sábado, 25 de agosto de 2012

O Escritor Astronauta saiu daquele apartamento vazio com os pensamentos anestesiados. Desceu as escadas ainda sem entender o que havia acontecido minutos antes com ele naquele lugar. Pensava no guarda-roupa, no leão, na música que tocava sem parar, nas pessoas com as quais ele possivelmente havia conversado e nos livros com personagens de sua história na capa. Foram momentos tão reais que sua mente sentia uma dificuldade imensa em considerar que tudo aquilo foi um sonho maluco. Continuou descendo os degraus, percebendo agora o silêncio que reinava pelo prédio. Não havia mais qualquer música ecoando pelo ambiente. Chegou no corredor que levava ao seu apartamento, e viu as pedras lunares ainda pelo chão, exatamente no mesmo lugar em que estavam quando passou por ali alguns minutos atrás. "Parece que as pedras que Drummond anda deixando por aí definitivamente não fazem parte de meus estranhos devaneios", pensou o Escritor. Caminhou em direção à escotilha de seu apartamento, e quando estava tirando as chaves do bolso de seu traje, notou um pequeno bilhete grudado bem na entrada. "Estive aqui e não encontrei você. Fiz uma descoberta fantástica e preciso que você veja. Assim que puder, me encontre no estacionamento do Shopping ainda hoje. Seu amigo Dr. Brown", dizia a mensagem escrita em um papel tirado daqueles pequenos bloquinhos de lembretes. De início, o Escritor pensou em ignorar aquele recado, pois estava muito ocupado com o seu livro e tinha reservado aquela manhã justamente para pesquisar a respeito do momento exato em que sua história tomou um rumo diferente de tudo o que ele havia imaginado até então. Mas parou um instante, pensativo, ainda com as chaves na mão, e lembrou-se que, mesmo com aquele olhar meio espantado e aqueles levemente desarrumados cabelos brancos precoces para os 34 anos que tinha, Dr. Brown sempre foi um de seus amigos, assim como Sérgio e Caroline, que constantemente inspiravam grandes ideias que eram aproveitadas em seus livros. A mais recente intervenção sugerida por Dr. Brown foi a de trabalhar com a temática de viagens no tempo, sugestão essa que o Escritor achou interessante e incluiu posteriormente no seu trabalho atual, com a personagem Hemilly viajando no tempo utilizando o Destemporizador. Ainda assim, achava estranhas as conversas insistentes do amigo a respeito de deslocamentos temporais onde ele citava constantemente Einstein e sua famosa Teoria da Relatividade. O Escritor guardou as chaves e o bilhete em seu bolso e desceu as escadas, mas foi parado bem no meio dos degraus por um novo bilhete pregado na parede. "Não entre em pânico. Você vai voltar um pouco no tempo. Acredite", era o que estava escrito no papel. "Engraçado. Esse bilhete não parece ser do Dr. Brown. Quem escreveu este tem uma letra muito parecida com a minha", disse o Escritor para si mesmo, olhando desconfiado para aquela caligrafia semelhanta à sua. Em sua viseira apareceu imagens translúcidas de mensagens suas escritas à mão com caneta esferográfica preta, algumas em folhas de caderno, a maioria em folhas de ofício. Fez uma mapeamento comparativo das letras e constatou que aquele bilhete foi escrito por alguém com uma letra idêntica à sua. Guardou esse novo bilhete em seu bolso quando ouviu um barulho forte no andar de baixo, como se alguém tivesse caído das escadas. Continuou descendo, dessa vez com passos mais rápidos, pulando alguns degraus, chegando ao andar térreo com rapidez. Mas não viu ninguém caído, apenas encontrou a porta da frente do prédio aberta, e imaginou que aquilo tivesse sido ação desleixada de alguns dos moradores que não se preocupam com a segurança do local ondem residem. Saiu olhando para os dois lados da rua, como que procurando por alguém conhecido, algum vizinho, mas só visualizou pedestres estranhos. Olhou para o céu, e ficou aliviado ao perceber que não caia mais aquela chuva fina e que o tempo estava melhorando. O Shopping não ficava muito distante de sua casa, então não demoraria muito em chegar ao destino combinado pelo seu amigo Brown. Fez uma rápida estimativa e os números nas imagens em sua viseira mostravam que estaria no local de encontro em no máximo 20 minutos, indo pelo caminho mais curto possível.
Assim que chegou, checou a pequena imagem translúcida de um relógio digital que aparecia na viseira de seu capacete. Como realmente previu, chegou no tempo estipulado ao estacionamento do Shopping, e somente quando começou a procurar pelo Dr.Brown, o Escritor se deu conta da imensidão daquele lugar lotado de carros estacionados. Observando todas as vagas ocupadas, não fazia ideia de onde encontraria seu amigo. Andou sem rumo durante alguns minutos por entre os automóveis. Não seria muito difícil encontrá-lo, já que deduzia que um estacionamento sempre teria mais carros do que pessoas. "Ninguém vem a um shopping para ficar perambulando pelo estacionamento", pensou enquanto olhava para todos os lados, na esperança de avistar Dr. Brown. Mas ao passar próximo de uma Hilux preta parada ao lado de um Sandero vermelho, escutou um barulho sinistro às suas costas, sons finos e estridentes, porém não muito altos. Olhou para trás um pouco assustado, e considerou a possibilidade de algum motorista ter atropelado um animal pequeno, mas descartou logo a hipótese pois concluiu que isso seria improvável ocorrer ali, já que estava no meio de um centro urbano. Os estranhos guinchos ecoaram novamente, e dessa vez o Escritor viu pequenos sopros de fogo surgir atrás de um carro, criando bolas incandescentes que não demoravam a desaparecer no ar. Caminhou lentamente na direção de onde haviam surgido as pequenas labaredas, sentindo o coração acelerado, experimentando uma mistura de medo e curiosidade em seu íntimo, sem fazer ideia do que encontraria à sua frente. Aproximou-se silencioso e então viu, paralisado por um pavor contido, uma garota aparentando não mais que 14 anos saindo por entre os carros, seguida de perto por dois pequenos dragões voadores, descrevendo voos rasantes e discretos pelo asfalto do estacionamento. Ainda sem notar a presença do Escritor assustado com a cena, a jovem, com seus longos cabelos loiros presos atrás por diversas tranças lindamente entrelaçadas e vestida tal qual uma nômade de tribos de desertos distantes, esgueirava-se rápida juntamente com seus dois seres reptilianos alados cuspidores de fogo. Parecia perdida, como se estivesse desesperada procurando uma saída daquele lugar completamente estranho para ela. Ainda apavorado, o Escritor presenciou aquela situação como uma vaga sensação familiar percorrendo sua mente, como se já tivesse visto aquela garota e seus dragões em algum outro lugar, um notíciario ou um livro conhecido. Um dejá vù atravessou seu corpo, provocando um calafrio em sua espinha. Sem fazer barulho, seguiu a jovem de uma distância segura. Olhou por baixo de uma Pajero branca, e encontrou a menina agachada entre dois carros, com os pequenos dragões escondidos embaixo de um dos veículos. Nesse momento, o Escritor Astronauta sentiu uma mão tocando seu ombro com firmeza, e um novo susto o fez encolher-se todo contra o pneu da Pajero onde estava apoiado. Felizmente, era Dr. Brown vestido como um arqueólogo aventureiro, com seus olhos meio espantados e seus cabelos brancos sempre desarrumados, ainda que estivesse usando um chapéu estilo Indiana Jones. "Então você está aqui! E pelo que vejo, parece que já encontrou minha descoberta fantástica, hein?", disse Dr. Brown num sussurro entusiasmado. "Doutor! Você me assustou!", disse o Escritor, sentindo o coração mais acelerado ainda. Meteu a mão em seu bolso, pegou os bilhetes e os entregou ao amigo, "Eu recebi seus recados". "Recados? Ah, sim, eu deixei um bilhete para você quando fui em sua casa. Esse outro recado não é meu, eu não escrevo tão horrível assim", disse Dr. Brown, enquanto amassava os dois pedaços de papel e os jogava longe. "Mas Doutor, eu encontrei esses dois...", o Escritor tentou explicar sobre os bilhetes, mas foi interrompido pelo amigo, visivelmente animado, "Incrível, não é? Eu a encontrei faz um semana em um outro estacionamento. Tentei fazer contato, mas ela não entendeu minha aproximação, se assustou e desapareceu com seus dragões. A princípio, eu pensei que poderia ser maluquice minha, mas então hoje encontrei ela aqui no estacionamento desse Shopping, e só então decidi procurar você", explicou Brown, quase sem folêgo. "Mas eu não entendo. De onde ela veio? E aqueles bichos seguindo ela? São... dragões?", indagou o Escritor, confuso. "Eu acredito que ela tenha encontrado, acidentalmente, alguma fissura no tecido espaço-temporal e acabou passando através dele para o nosso mundo", o Dr. Brown ajeitou seu chapéu, ajoelhou-se e observou a garota e seus dragões por baixo do veículo, como se estivesse analisando seu comportamento e suas expressões corporais. Então prosseguiu com suas mirabolantes explicações, "Quando a vi pela primeira vez, ela demonstrava estar confusa e amedrontada, e falava uma língua estranha. Quando me aproximei, os pequenos dragões que a acompanhavam reagiram cuspindo fogo contra mim". "Como se estivessem protegendo a menina?", perguntou o Escritor. "Exatamente! Agora ela deve estar procurando novamente uma outra abertura espaço-temporal para voltar para o seu mundo". A cada nova explicação do amigo, o Escritor estampava uma expressão diferente de espanto em seu rosto. E quando se preparava para fazer uma nova pergunta, pequenos redemoinhos de ventos começaram a se formar próximos de onde estavam escondidos. O Escritor olhou para o Dr. Brown, que segurava o seu chapéu na cabeça para que não fosse levado pelo vento enquanto admirava toda aquela situação com um sorriso de satisfação em seu rosto. "Isso é fantástico! Acredito que estamos a ponto de presenciar o rompimento do tecido espaço-temporal aqui, neste estacionamento!", disse o Dr, eufórico. "Você está dizendo que algum tipo de portal vai se abrir no meio do estacionamento do shooping?", perguntou o Escritor. "Sim! Exatamente! Esses portais devem surgir ocasionalmente e permanecem abertos por questões de segundos". "Isso é loucura", disse o Escritor, vendo imagens translúcidas em sua viseira com informações sobre velocidade do vento e alterações nas frequências das ondas de som ocorrendo em uma pequena área do estacionamento. Então eles escutaram um zumbido estranho seguido de um rápido clarão e de um barulho implosivo. De onde estavam, presenciaram a abertura de um pequeno portal dimensional entre dois carros estacionados ali próximos, um Corsa Sedan preto e um CrossFox cinza. Não demorou muito e viram a garota de tranças passar correndo com seus pequenos dragões em direção à fissura aberta. "Vamos! Não podemos perder essa oportunidade!", disse Dr. Brown cheio de entusiasmo, partindo em seguida atrás da menina. "Espere! O que você pretende fazer?", indagou o Escritor, mas sem obter qualquer resposta do amigo, que no meio do caminho deixou cair uma caneta esferográfica e um pequeno bloco de anotações. "Doutor!... Espere!... Doutor!", gritava o Escritor em vão. Não podia deixar o amigo cometer qualquer tipo de loucura que colocasse sua vida em perigo, e saiu atrás dele, apanhando a caneta e o bloquinho de anotações largados na aslfato e guardando no bolso de seu traje. A garota nômade atravessou o portal com os dragões cuspidores de fogo, e em seguida foi a vez de Dr. Brown passar pela fissura. O Escritor sabia do perigo que envolvia aquela situação toda, mas não pensou duas vezes em acompanhar o amigo maluco. Passou pela fissura e encontrou-se no meio de um deserto imenso cheio de platôs sob um sol escaldante. A garota corria ao longe junto com seus dragões, e atrás dela a figura espontânea, exploratória e destemida do Dr. Brown, seguindo aqueles personagens de um outro universo. Gritou o nome do amigo, mas ele parecia completamente indiferente aos seus chamados. Quando estava prestes a continuar seguindo Dr. Brown, sentiu uma força estranha atrás de si segurando seu corpo e o impedindo de movimentar-se. Era aquela fissura criando uma poderosa força gravitacional ao redor dela e atraindo o Escritor de volta para a abertura. Rapidamente ele foi sugado de volta pelo portal, sendo jogado a alguns metros contra o chão do estacionamento. A abertura espaço-temporal começou a se consumir, como se estivesse engolindo a si mesma para enfim desaparecer como um ponto luminoso numa implosão silenciosa. Aturdido, o Escritor Astronauta permaneceu alguns segundos no chão, até se levantar assustado pelo som da buzina de um carro que quase o atropela naquele momento. Ficou parado alguns instantes no meio daquele imenso estacionamento do shopping, tentando entender o que havia se passado minutos antes. Olhou para todos os lados, na esperança de ver Dr. Brown por ali, mas sabia que seria uma busca em vão.
Retornou para casa, dessa vez sem se importar muito em fazer o caminho mais curto, optando por um novo trajeto, enquanto pensava no que poderia acontecer com Dr. Brown perdido por terras estranhas em um universo desconhecido. Quando estava próximo ao quarteirão onde ficava seu apartamento, o Escritor percebeu em sua viseira algo errado com seu relógio digital. Ele estava marcando um horário 25 minutos anterior ao horário em que havia saido naquela tarde para o encontro marcado no estacionamento do shopping. "Aquele portal deve ter alterado a configuração do horário", pensou. Lembrou-se que ali perto, em um cruzamento movimentado no centro da cidade, havia um relógio de rua em formato de Iphone. Sem demora, caminhou em direção onde as duas avenidas se encontravam sempre congestionadas e avistou o imenso Iphone registrando a temperatura e a hora local, e ao ver o horário que ele marcava, arregalou o olhar. O relógio de rua também estava 25 minutos atrasado, exatamente igual ao seu relógio digital. "Isso não é possível", disse boquiaberto. Na esquina oposta do cruzamento, avistou outro homem careca, de terno e gravata, segurando uma maleta e mexendo com uma das mãos algo que parecia um pequeno tablet dourado. Subitamente parou o que estava fazendo e olhou na direção em que se encontrava o Escritor. "Novamente esses Observadores estranhos", pensou, enquanto retomava o caminho de casa, confuso com aquele horário atrasado. Entrou no prédio onde morava com uma sensação maluca de deslocamento, que o estava deixando um pouco tonto. Estava subindo as escadas, reordenando seus pensamentos e disposto a esquecer tudo aquilo e retomar as pesquisas que havia planejado fazer naquela manhã com seu livro, quando chegou no corredor e um visão surreal fez paralisar completamente todos os seus movimentos. Viu a si mesmo parado ali bem diante da escotilha de seu apartamento, com as chaves na mão e lendo um bilhete. Recuou atônito para as escadas, o coração disparado, tentando assimilar tudo aquilo. Começou a sentir falta de ar, e uma tontura mais forte fazia seus pensamentos colidirem uns nos outros numa velocidade catastrófica. Estava a ponto de perder os sentidos a qualquer momento, mas precisava de qualquer maneira não deixar aquele pânico tomar conta de seu cérebro. Lembrou-se do recado que havia encontrado exatamente onde estava e, seguindo a orientação do que tinha lido naquele pedaço de papel, procurou rapidamente se controlar. "Eu voltei no tempo. Eu voltei no tempo. Não é possível, mas eu voltei no tempo, eu voltei no tempo, eu voltei no tempo", repetia sem parar o Escritor, que começou a se tocar, como se quisesse ter certeza de que ele existia realmente naquele momento. Ao tocar no bolso de seu traje, lembrou-se do bloquinho e da caneta que o Dr. deixou cair no estacionamento e que tinha pego de volta e guardado consigo. "Sim, o bloco de anotações. Preciso deixar um recado para mim mesmo. Sim, um aviso, preciso avisar a mim dessa viagem maluca no tempo, senão entrarei em colapso quando eu me encontrar comigo novamente em breve. Mas o que estou dizendo? Fez sentido o que eu disse agora?", sussurrava freneticamente o Escritor, enquanto tentava controlar sua respiração e escrever o bilhete com o recado "Não entre em pânico. Você vai voltar um pouco no tempo. Acredite". Assim que terminou de escrever, pregou o pequeno papel autocolante na parede e desceu nervoso o lance de escadas que faltava em direção ao primeiro andar. Enquanto descia as escadas entre o primeiro andar e o térreo, desequilibrou-se e caiu rolando pelos degraus. Levantou-se rápido, pois sabia que o barulho de sua queda acabaria chamando a atenção do seu outro "EU", que já deveria estar também descendo as escadas em pulos flutuantes. O Escritor, mesmo aturdido com a queda, correu para fora do prédio, deixando para trás a porta aberta, e se escondendo atrás de um carro estacionado ali próximo. Esperou ainda alguns momentos, aguardando seu outro "EU" terminar de fazer as tais estimativas de quanto tempo levaria para chegar o mais rápido possível ao estacionamento do shopping. Ainda escondido, conseguiu ver a si mesmo atravessando a rua rumo ao encontro marcado com o seu amigo Dr. Brown. Respirou fundo e sentou na calçada da rua. Seu fluxo de pensamentos voltava ao ritmo normal, assim como sua respiração e seus batimentos cardíacos, como mostrava as informações translúcidas na viseira de seu capacete. Tudo o que o Escritor queria agora era tomar um boa xícara de café e fumar um cigarro na calmaria silenciosa de seu apartamento.

Escrito por Ulisses Góes

domingo, 19 de agosto de 2012

Aquela manhã fria e chuvosa era um manso conforto para o Escritor Astronauta, depois da noite angustiante que havia experimentado, sendo atormentado pela presença sombria daquele ser misterioso mostrando seu sorriso deformado e seu olhar doentio de psicopata. Olhava pela janela o céu nublado e a chuva fina caindo, enquanto fumava um cigarro entre goles de um café que tinha feito assim que acordou. Em seus pensamentos concentravam-se ainda alguns resquícios arrepiantes de lembranças do que ocorrera há poucas horas. Um leve calafrio percorreu sua espinha, como se uma presença tenebrosa tivesse passado rapidamente por ali, aproximando-se de sua nuca e soprado um vento congelante. Olhou ao seu redor com certa desconfiança, apenas para certificar-se de que não havia nada ou ninguém por perto. Tomou outro gole de café, e lembrou-se do email recebido no dia anterior com aquela frustrante notícia da Editora. Precisava definitivamente afastar todos aqueles pensamentos e lembranças que pudessem, de alguma forma cruel, trazer à tona novamente sentimentos depressivos e, consequentemente, aquele ser perturbador e tenebroso. Procurou concentrar-se no desenvolvimento da história de seu livro. Precisava dar seguimento às ideias planejadas para as páginas seguintes, além de descobrir como aquela parte da história em que havia parado acabou tomando um rumo tão diferente do que ele havia imaginado. As imagens translúcidas continuavam a flutuar por toda parte, e o Escritor observava agora cada uma delas com extrema atenção, buscando lembrar até que ponto da narrativa ele tinha realmente imaginado todas as situações acontecendo com seus personagens. Correu a mão por imagens próximas, que mostravam cenas nítidas dos dois irmãos fugindo dos agentes que os perseguiam, depois puxou outras cenas, e em uma delas aparecia Hemilly utilizando pela primeira vez o Destemporizador. Em outra cena, Henrique descobria o Livro da Morte num dia de chuva e saía correndo pela rua tentando inultimente não ficar molhado. Naquela manhã, o Escritor gastou um bom tempo fazendo um pesquisa em seu livro, relendo trechos escritos, procurando falhas na narrativa, pontas soltas na história, numa tentativa de encontrar o ponto exato onde ele possa ter perdido um certo controle da trama criada. Estava concentrado em uma das imagens flutuantes quando um barulho no teto tirou momentaneamente sua atenção. Olhou para cima intrigado, tentando imaginar a origem daquele som incômodo. "Parece alguma coisa sendo arrastada", pensou, enquanto seu olhar permanecia mirando o teto. Alguns segundos se passaram até que o silêncio predominasse novamente, tranquilizando o Escritor que retornou a observar atentamente as imagens translúcidas. Porém, não demorou muito para o barulho retornar, atrapalhando o trabalho minucioso que estava fazendo. "Mas o que está acontecendo lá em cima? Esses vizinhos nunca fizeram barulho antes. O que será que estão arrastando?". Cismado com aquela situação que visivelmente lhe causava um desconforto sonoro, decidiu sair e tomar conhecimento do que se passava no andar de cima. Colocou seu capacete, abriu a escotilha e escutou pela primeira vez um barulho abafado de música ecoando pelo corredor. Enquanto fechava a escotilha, percebeu algumas pedras lunares esquecidas próximas à escada de acesso ao andar superior. "Aposto que isso é trabalho de Drummond. Essas pedras só podem ser dele. Preciso falar com o pai desse menino ainda hoje", pensou, e enquanto subia as escadas, ouvia aquele barulho estranho e insistente, além da música com acordes meio familiares aos seus ouvidos. Subiu mais alguns degraus e chegou ao corredor do andar de onde todos aqueles sons pareciam surgir. Havia no chão um estranho rastro de algo branco, parecido com algodão. O Escritor agachou-se e tocou com os dedos, sentindo uma leve textura macia e gelada. "Isso é neve?", indagou para si mesmo, seguindo com os olhos aquela trilha branca que mais adiante sumia por uma porta entreaberta de um dos apartamentos. Levantou-se e continuou andando discretamente pelo corredor, quando começou a escutar acordes conhecidos de uma música do Pink Floyd. Ao chegar na porta, conseguiu ouvir com clareza "Comfortably Numb" ecoando em seus ouvidos. Bateu na porta e soltou um "Olá" interrogativo na esperança de que alguém viesse receptivamente ao seu encontro, mas não obteve qualquer resposta, e ninguém apareceu. Empurrou lentamente a porta e ensaiou dois passos para dentro do apartamento quando descobriu, espantado, um vasto ambiente iluminado pela luz mansa daquela manhã chuvosa. Considerou a possibilidade de que aquele apartamento parecia ser maior por dentro do que realmente mostrava ser por fora. O rastro misterioso de neve atravessava toda a extensão do salão e terminava em um guarda-roupa antigo de madeira, onde mais neve se acumulava em um monte que saía por uma de suas portas. O restante do ambiente era dominado por uma ausência de móveis, um teto com a pintura descascando em diversos pontos, pilastras de ferro corroídas completamente pela ferrugem e um chão coberto de poeira acumulada de muito tempo. "Olá", disse mais uma vez o Escritor, que não encontrava qualquer sinal de resposta, estranhando aquele apartamento ser tão imenso e, aparentemente, não encontrar seus moradores. Viu em um canto um velha vitrola tocando um disco de vinil, e percebeu que era dali que vinha o som daquela música nostálgica. Quando então decidiu caminhar na direção da origem da canção, revelou-se o inesperado para ele. Não havia gravidade dentro do apartamento. Ao invés de dar um passo, o Escritor Astronauta saiu flutuando suavemente pelo ambiente. A música ecoava pelo salão junto com os ruídos característicos de um disco com alguns arranhões e chiados, à medida em que ele voava, girando lentamente acima da trilha de neve, indo de forma estranha ao encontro daquele guarda-roupa. O tempo parecia seguir inerte ali dentro, com os segundos sendo devorados por uma eternidade calibrada. O Escritor viu a porta do guarda-roupa ser bruscamente aberta por uma rajada de vento vinda de seu interior, para no momento seguinte sair dali de dentro um leão, num salto majestoso, caminhando e sentando calmamente alguns metros à sua frente. O Escritor Astronauta, levemente assustado, sentiu uma descarga de adrenalina em seu corpo ao ver aquela fera observando silenciosamente sua viagem aérea. A música havia chegado ao fim, e só se ouvia o barulho do vento uivando naquele vasto ambiente, um vento que começou a ficar mais forte, poderoso o suficiente para lançar o intruso visitante de volta pelo salão imenso, jogando-o para fora do apartamento e arremessando-o contra a parede do corredor. A porta, que minutos atrás encontrou aberta, fechou-se bruscamente. Atordoado, levantou-se depois de alguns segundos e ficou imaginando o que foi tudo aquilo que aconteceu naquele momento. O rastro de neve no corredor havia desaparecido, e estranhamente começou a escutar a mesma música do início novamente. Movido por uma curiosidade corajosa, decidiu tocar a campainha, mas ela não estava funcionando. Relutou um pouco, e por fim deu três batidas firmes, aguardando pacientemente, até que alguém abriu a porta. "Bom dia", disse o Escritor, já percebendo que não se tratava do vizinho que morava ali e que ele conhecia há tempos, "Desculpe incomodar você assim tão cedo". "Não se preocupe, eu costumo acordar cedo", respondeu educadamente o jovem que aparentava ter pelo menos uns 27 anos. Cabelos lisos compridos e barba por fazer, ele estendeu a mão em gesto de cumprimento. O Escritor retribuiu amistoso e perguntou meio confuso, "Não me recordo de você. Você é novo aqui no prédio?". "Sim, nos mudamos ontem para cá, eu e meu irmão. Eu sou David, muito prazer. Aquele ali deitado no sofá lendo é o meu mano caçula, Elton", disse o rapaz, apontando para um garoto, aparentando uns 14 anos, completamente concentrado na leitura de um livro onde, na contracapa, o Escritor podia enxergar com nitidez a foto do autor, C.S. Lewis. Olhou sutilmente por sobre o ombro do novo vizinho e percebeu que o apartamento por dentro não era o mesmo que ele tinha visto e entrado minutos atrás, mas sim, um simples apartamento como todos os outros daquele prédio, inclusive quase idêntico ao seu próprio. "Muito prazer, eu sou seu vizinho do andar de baixo. Eu me chamo...", o Escritor estava prestes a se apresentar quando David o interrompeu com um ar meio surpreso, "Espera um pouco, eu acho que eu te conheço. Você não é aquele escritor conhecido que lançou uma série de livros contando a saga dos jovens vajantes do Tempo?". Aquela pergunta rapidamente chamou a atenção de Elton, que desviou seu olhar meio arregalado de espanto em direção à porta onde se encontrava o Escritor Astronauta. "Cara, que surpresa. Meu irmão tem todos os seus livros. Elton, olha quem é nosso vizinho", David mal terminou a frase, e Elton já estava bem ao seu lado, sorridente, com um brilho admirado no olhar. "É sério que você é vizinho da gente?", perguntou entusiasmado o adolescente. "Sim, eu moro no apartamento de baixo, mas...". "Acho que você já percebeu que tem um fã de suas histórias aqui", disse David, sem deixar que o seu vizinho visitante terminasse a frase, "Não é comum hoje em dia a gente ter um irmão que prefere ler livros do que ficar jogando videogames. Graças ao nosso pai que Elton gosta de ler desde criança". "Sim, de fato, concordo com você, infelizmente o hábito da leitura não é algo importante para os jovens de hoje", respondeu o Escritor, com os pensamentos um tanto confuso com aquela situação toda. Não se lembrava de ter visto nenhuma mudança no dia anterior ou em qualquer dia da semana, e o fato de o terem reconhecido como um provável escritor famoso o deixou cismado. Estava prestes a perguntar sobre aquele assunto com David, quando foi convidado a entrar. "Obrigado, David", disse, aceitando o convite, acompanhando os dois irmãos até a sala, onde viu novamente aquela mesma vitrola antiga tocando o mesmo disco de vinil, impregnando o ambiente com a canção nostálgica do Pink Floyd. Logo ao lado haviam pilhas de discos e livros. "Que interessante. Você tem uma relíquia que ainda funciona", comentou o Escritor, curioso. "Sim. Esse Toca-discos foi de meu pai. Eu gosto de ficar ouvindo alguns discos dele, sempre tenho boas lembranças", explicou David, de braços cruzados, com uma expressão perdida em memórias enquanto mirava o vinil girando no aparelho. "Como eu ia dizendo, eu moro no andar de baixo, mas eu não...", O Escritor não conseguiu terminar mais uma frase, sendo novamente interrompido, desta vez por Elton. "Espera só um instante, eu já volto", disse o garoto, correndo em seguida para o seu quarto e voltando momentos depois com 5 livros e uma caneta em suas mãos. "Eu imaginava que você não perderia essa oportunidade", disse David, ainda de braços cruzados, olhando com uma expressão sorridente para o irmão entusiasmado com aquele momento. "Você pode autografar os meus livros?", perguntou Elton, e sem esperar que o Escritor respondesse, continuou falando animado, estendendo um dos livros para ele, "Eu sou fã de suas histórias. Os personagens que você criou são incríveis, os dois irmãos e a amiga deles. Eu curti muito o primeiro volume, quando Henrique encontrou o livro misterioso que tinha o poder de matar as pessoas que tivessem o nome escrito neles". Ao ouvir aquelas palavras de Elton, o Escritor tomou um choque, congelando-se de pavor. Olhou para o livro em suas mãos, e viu na capa a imagem dos seus três personagens, Henrique, Roney e Hemilly, logo abaixo do título, com olhares desconfiados de quem procura pelo perigo ao seu redor. Ficou mudo, sentindo uma aceleração anormal no coração. Não conseguia fazer as palavras saírem de sua boca, e percebeu uma crescente falta de ar dentro de seu capacete. Elton permanecia diante dele, animado em explicar detalhes da história de cada um volumes. Porém, o Escritor já não escutava direito o que o garoto dizia. Sua visão começou a ficar turva, embaçada, e ele já não dicernia direito as imagens dos irmãos à sua frente. Suas vozes pareciam estar se misturando com a música que tocava insistentemente. Aturdido com toda aquela situação, sentiu uma tontura forte dominar seus sentidos, e tudo começou a girar lentamente ao seu redor até sumir em uma escuridão silenciosa. Caiu desmaiado e assim permaneceu por um minuto. Quando voltou a si, estava no chão, olhando para um teto branco e descascado em algumas partes. Ainda um pouco tonto, levantou-se, tentando recuperar os sentidos e recolocar seus pensamentos em ordem. Em sua viseira, um imagem translúcida mostrava algumas informações básicas de seus sinais vitais, alertando sobre sua pressão baixa e seus batimentos cardíacos. Passou a mão na viseira, afastando as imagens. Com algum dificuldade, levantou-se, respirando fundo. Calmamente olhou ao seu redor, examinando aquele apartamento vazio, empoeirado e inabitável. Era igual ao seu, com a diferença de que ninguém mais morava ali já há algum tempo. Permaneceu confortavelmente entorpecido pelo silêncio, enquanto olhava pela janela aquela manhã ainda fria e chuvosa.

Escrito por Ulisses Góes

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Voltando para casa, o Escritor Astronauta percebia algo diferente ao seu redor. Assim como sua percepção foi alterada por estranhar aquela floresta aparecer em um lugar onde tinha certeza ter visto momentos antes diversos prédios, agora caminhava pelas ruas e avenidas observando detalhes que jurava não fazer parte de seu mundo até algumas horas atrás. Um cartaz anunciando o show de uma banda cujo nome parecia diferente, uma placa de sinalização onde antes havia uma árvore, até mesmo uma pessoa conhecida, do outro lado da rua, vestida como policial militar prendendo um meliante em flagrante por tentar assaltar uma banca de revista que deveria estar na praça logo adiante, e não ali naquele ponto da avenida. "Espere um momento. Desde quando ele virou policial? Até onde me lembro, ele é advogado", pensou confuso o Escritor, enquanto observava parado aquela confusão acontencendo a poucos metros de onde estava. Seu amigo conhecido abria passagem entre a multidão curiosa, levando o infrator algemado até onde estava estacionada a viatura. "Que estranho. Será que ele agora é policial e eu não fiquei sabendo?", perguntou a si mesmo, enquanto retomava seu caminho de volta para casa. No céu, acima de sua cabeça, não havia mais qualquer sinal das borboletas que seguira mais cedo, mas apenas uma revoada rasante de andorinhas por entre prédios e árvores. Enquanto caminhava, ativou mentalmente páginas translúcidas de pesquisas na viseira de seu capacete com o intuito de certificar-se da profissão daquele conhecido amigo. Depois de alguns momentos, descobriu surpreso que seu amigo era, de fato, um policial militar. "Mas como? Eu tinha quase certeza de que ele era advogado. Seu escritório fica pelo Centro, não muito longe daqui". Um pouco confuso, sacudiu o capacete, afastando as imagens, e decidiu sair de sua rota para ir ao endereço onde funcionava o escritório de advocacia do amigo. Ao longo do caminho, seus passos ficaram gradativamente mais rápidos. Ao dobrar a esquina para a rua que seria seu destino final, esbarrou em alguém que vinha na direção contrária. Diferente das outras vezes, parou depois do esbarrão e olhou para o estranho,  que também havia parado à sua frente. Sentiu um calafrio quando viu aquele estranho de terno e gravata, careca e com um olhar que parecia o encarar silenciosamente, examinando seus pensamentos, enquanto inclinava a cabeça lentamente de lado. "Observador", pensou aflito o Escritor, desviando o olhar rapidamente e retomando seu caminho sem dizer uma palavra sequer, mas ciente de que aquelas coincidências estavam se tornando insistentes e estranhas. Reorganizou seus pensamentos e à medida em que ia chegando ao seu destino traçado de última hora naquela tarde, procurou o prédio onde ficava o escritório do amigo advogado. Estava quase perto, mais alguns metros. Quando o endereço já se encontrava praticamente ao alcance de sua visão, sentiu então o choque do momento sendo despejado em suas veias através de overdoses de adrenalina pura. Chegou ao local exato e descobriu que não havia qualquer prédio ali, mas apenas um imenso terreno baldio. Ficou parado, atônito, congelado pela situação anormal que o deixou com os pensamentos desorientados. Era estranho tudo aquilo e não fazia a menor ideia se aquilo era uma brincadeira maluca de sua mente, ou um grande equívoco que estava cometendo. "Posso ter me equivocado e acabei seguindo uma ideia meio louca. De repente, eu nem conhecia aquele policial, devo ter confundido ele com alguém que conheço, pela enorme semelhança. E este endereço, posso até estar em uma rua errada, ou então simplesmente demoliram o prédio que havia aqui antes. Está explicada essa minha confusão", disse o Escritor, procurando nitidamente dissipar todas as dúvidas com relação ao momento desorientado pelo qual parecia passar.
Retomou o caminho de volta para casa, enquanto percebeu em sua viseira pequenas imagens translúcidas surgindo, alertando sobre as condições climáticas tempestuosas que estavam para surgir naquele final de tarde. Informações como temperatura, pressão pluviométrica, umidade relativa do ar e velocidade do vento piscavam insistentes no lado esquerdo de sua viseira. O Escritor leu todos aqueles dados, olhou para o céu e então enxergou a tempestade aproximar-se lenta e perigosamente no horizonte. Decidiu apressar o passo assim que sentiu rajadas fortes de vento mais fortes que o normal atravessando as ruas. Conseguiu chegar na porta do seu prédio antes que qualquer chuva começasse a desabar, e ao entrar pela porta, um novo esbarrão, dessa vez com o carteiro que saía preocupado com aquele temporal iminente. "Carteiro. Isso me faz lembrar que preciso checar meus emails hoje para saber se tenho alguma resposta da Editora a respeito dos originais que enviei", pensou, enquanto subia as escadas. Fechou a escotilha de seu apartamento, tirou seu capacete, respirou fundo por ter chegado são e salvo em seu lar e foi até a cozinha, enquanto escutava trovões ao longe anunciando a tempestade. Fez um pouco de café, encheu uma xícara, andou pela sua sala afastando as dezenas de imagens translúcidas que sempre flutuavam pelo seu apartamento, sentou-se diante de seu computador e abriu seu email. Como havia previsto, a Editora havia respondido. Leu cada linha com atenção e constatou, profundamente decepcionado, que o editor-chefe informava que o original enviado não foi aprovado pelo Conselho Editorial, apesar dele particularmente ter gostado da história, que considerava de uma genialidade ímpar, segundo suas palavras ditas no email. Visivelmente desanimado e abalado com a resposta, o Escritor Astronauta sentiu uma alteração na força gravitacional exercida pela Terra naquele momento, como se influências negativas o estivessem pressionando contra o chão. A tarde estava se esvaindo mais rapidamente do que o habitual lá fora, e o céu havia escurecido antes do tempo por causa da tempestade que se aproximava anunciada por trovões distantes. Leu mais uma vez o email e parou exatamente no trecho em que o editor-chefe falava da tal "genialidade ímpar" de seus textos. Uma raiva contida começou a tomar forma em sua mente, e um torpor dominou seus sentidos por alguns instantes breves. Passou a mão na testa, massageando seus questionamentos mais interiores. "Se meu original é de uma genialidade ímpar, por que então diabos eles não aprovaram? Que porra de editor-chefe é esse, que elogia o que eu escrevo, e deixa um conselho editorial vetar meu trabalho?". Visivelmente chateado, pegou sua xícara de café e foi sentar-se no sofá da sala. A raiva aumentava a cada vez que lembrava do email. Sentiu um incômodo corroendo seu íntimo, um nervosismo contido começou a tomar conta de seus movimentos. Não tinha qualquer ânimo para escrever nada naquele momento. Olhou as imagens translúcidas com suas luminosidades sutis flutuando acima de sua cabeça, calibrando a penumbra que dominava o ambiente de seu apartamento naquele momento, invadida ocasionalmente pelos clarões da tempestade. A raiva que estava sentindo se misturava a outras sensações amargas, como decepção e tristeza. "Será que vai chover quando você morrer?", disse uma voz em um tom irônico controlando uma possível risada no final da frase, fazendo o Escritor ficar imóvel, enquanto mexia lentamente a cabeça procurando a origem da voz estranha. "Então me diga. Sua raiva é pela resposta negativa, ou por começar a considerar inútil tudo o que você tem feito até o momento em sua vida?", perguntou aquela voz, novamente segurando uma risada quase frouxa ao final da pergunta. "Vamos lá, cheque o seu cérebro. Descubra a raiz de seu problema, a causa de sua raiva contida. Cheque seu cérebro. Com certeza você vai descobrir o inútil ser humano que você é". Dessa vez uma gargalhada liberada em uma loucura esquizofrênica ecoou pela sala dominada pela escuridão da noite que se aproximava. Permaneceu sentado no sofá, e junto com a sua raiva, seu desânimo, sua decepção, agregou-se um pavor congelante pela estranha presença que estava sentindo em seu apartamento. A escuridão avançava por todos os lados. Encarou um canto da sala onde já dominava o breu supremo, e finalmente viu uma aparição sinistra caminhar lentamente com passos macabros e surgir em sua frente. Nos segundos seguintes, teve a nítida impressão de estar ouvindo Alice in Chains e seus acordes distorcidos de guitarra de "Check My Brain". A aparição sinistra parou diante do Escritor Astronauta. Era uma cópia fiel dele mesmo, e a única diferença entre eles era o traje totalmente preto que usava. A viseira do capacete estava aberta, porém o Escritor atônito não enxergava nenhum rosto ali. Aquele seu clone das trevas ficou parado alguns segundos criando um barulho de respiração abafada, fazendo o Escritor se sentir o próprio Luke Skywalker encarando seu pior pesadelo. Um medo perturbador dominou seus nervos assim que a voz estranha se fez ouvir de novo. "E então? Curtiu minha imitação de Darth Vader?", disse seu clone das trevas, dessa vez soltando outra risada sinistra, aproximando-se e encarando o Escritor. Um rosto apareceu dentro da escuridão do capacete, e o Escritor poderia jurar estar vendo a face do emblemático Coringa interpretado pelo falecido Heath Ledger. Seu coração pulsou acelerado pelo pavor daquele rosto sorrindo diante dele. Não fazia a menor ideia do que fazer e nem do que dizer. "O que foi? Faltaram palavras agora para expressar seu medo? Para um escritor, quando faltam as palavras, deve ser algo semelhante à morte, hein?". E novamente seu clone sinistro soltou uma nova risada impregnada de uma esquizofrenia negra. "Mas e aí? Já checou seu cérebro atrás das respostas? Vamos lá, você tem capacidade, eu sei que tem... Olhe para você, um escritor 'famoso', autor de tantas 'obras geniais'. Será que não consegue me responder algumas perguntas tão simples?", o clone sinistro, com aquele rosto conhecido saído diretamente do filme de Batman, sentou-se na mesinha de centro diante do Escritor, e o encarou por arrastados microssegundos e continuou com seu discurso desafiador. "Como é ser um fracassado? Fico me perguntando a todo momento como é que você se suporta, como você aguenta viver sabendo que tudo o que faz nunca leva você a lugar algum. Todos os seus esforços sempre em vão, seus projetos sempre ficando pelo meio do caminho. E você, coitado, sempre fingindo que está tudo bem. Porra, cara! Me diz aí, estou curioso pra caralho!".
O Escritor sentiu uma angústia invandindo seu íntimo, enquanto escutava aquele clone maldito calmamente questionar todos os seus atos para em seguida rir descaradamente em sua cara. Fechou os olhos, criou coragem e questionou o motivo de toda aquela intimidação que estava sofrendo, "Por que você está aqui? O que você quer de mim? Você quer me derrubar, não é? Você quer que eu entregue o jogo?". O clone das trevas do Escritor levantou-se exaltado, rindo, "Olha só, finalmente criou coragem pra dizer alguma coisa. E aí? Vai admitir que é um fracassado completo? Vamos lá, reconheça, me faça feliz, me encha de orgulho, porra!". Aquela frase parecia uma verdadeira ofensa para o Escritor, que reuniu força interior suficiente para abrir os olhos e confrontar aquele seu pesadelo sinistro e tudo o que ele insistia em dizer na sua frente. "Você quer que eu desista de tudo aquilo que eu acredito, seu desgraçado. Você não é mais forte do que minha vontade", disse o Escritor de maneira contida, cerrando o dentes, demonstrando raiva por ter deixado aquela situação toda se materializar naquele momento difícil para ele. O clone das trevas parou por um momento, como que pensando nas palavras ditas pelo Escritor. Em seguida, se aproximou de maneira ameaçadora, mantendo uma distância de centímetros entre seus olhares, "Meu caro. Não estou nem um pouco preocupado em medir forças com você. Isso, para mim, é desnecessário. Você tem que entender uma coisa: eu sou parte de você, e você é parte de mim. Você me alimenta com suas paranóias e dúvidas. A sua falta de fé em você mesmo é o que torna minha existência possível. Logo, enquanto você sempre duvidar de você mesmo, eu estarei aqui, presente, assistindo sua morte lenta". O Escritor começou a ficar atordoado com aquelas palavras, apoiando a cabeça nas mãos, querendo colocar seus pensamentos em ordem e buscando se livrar de todas aquelas sensações negativas. "Você não pode dizer o que devo pensar, e nem como devo me sentir!". O Astronauta negro com seu rosto sorridente de Coringa não desistia de atormentar o Escritor e continuava a falar. "Mas não sou eu quem digo como você se sente. É você mesmo. E nem pense que vai se ver livre de mim. Não é porque você pode estar alegre que eu não existirei mais. Eu estarei sempre com você, esperando na escuridão sua raiva, seu desânimo, sua decepção e sua tristeza se manifestarem de novo para eu aparecer e te mostrar que eu ainda estou aqui e que posso orientar suas atitudes nesses momentos tão deliciosos para mim. Cheque sempre seu cérebro, porque eu sou sua desilusão, sua dor, sua fraqueza, seu medo, sua loucura, seu passageiro mais sombrio". O Escritor Astronauta sentiu uma mão pesada o empurrar contra o sofá, deitando seu corpo à força. Não conseguia se mexer, e sua respiração ofegante deu lugar a uma falta de ar angustiante. Aquele clone das trevas o segurava, e o rosto maquiavélico do Coringa antes presente no capacete havia desaparecido completamente, deixando somente aquela respiração abafada e sufocante como um Darth Vader nervoso prestes a sugar sua alma. Lá fora, a tempestade começava com uma intensidade impressionante. O Escritor fechou os olhos, concentrou seus pensamentos, fazendo-os retroceder no tempo. Aquele dia passou ao contrário em sua mente. Lembrou-se de estar mais cedo conversando animadamente com sua amiga Carol, ouviu sua risada animadora, fixou seu pensamento neste momento compartilhado com a Feiticeira Lunar e, inesperadamente, a aparição sinistra desapareceu rapidamente através de um grito esfumaçado de pavor. Levantou-se, ainda com o coração acelerado, e percebeu uma mansa claridade entrando pelas janelas de seu apartamento. Estava amanhecendo, e uma chuva fina anunciava um dia frio e nublado. Olhou para seu computador. A página com o email enviado pelo editor-chefe ainda permanecia aberta, exatamente como ele havia deixado horas atrás.

Escrito por Ulisses Góes 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Ao abrir a escotilha de seu apartamento, o Escritor Astronauta observou, surpreso e silencioso, uma revoada mansa de borboletas invadir o ambiente ao seu redor. Dezenas delas, de variadas cores, variados tamanhos, em voos majestosamente caóticos pelo ar. Sentiu uma fragrância envolvente que o cativou e fez lembrar de uma amiga sua, que em qualquer lugar que chegava deixava exalar aquele perfume encantador. Provavelmente um aroma de jasmim, flores do campo, não tinha certeza de qual fragrância era. Tentava decifrar aquele cheiro envolvente através de uma rápida pesquisa virtual, mas foi em vão, pois as borboletas voavam pelo ambiente, atravessando as imagens translúcidas suspensas pelo apartamento, causando sutis interferências caóticas nas transmissões. Não entendia ainda o motivo, mas agora não eram mais imagens e trechos escritos de sua história, além de outras pesquisas recorrentes ao que escrevia, que apareciam nas telas flutuantes, mas sim, noticiários e programas japoneses. "O que essas borboletas estão fazendo com minhas imagens?", pensou confuso o Escritor, quando escutou uma voz conhecida dissipar rapidamente seus pensamentos. Era uma voz familiar e parecia estar vindo de sua sala de estar. "Mas como? Se ninguém passou por mim...". Sua frase foi interrompida pela voz alegre que chamava pelo seu nome sem parar. Voltou para a sala e encontrou as borboletas rodopiando festivas ao redor de sua amiga Caroline, uma Feiticeira Lunar com um sorriso que deixava um frescor de hortelã exalar pelo apartamento. Sentada ao seu lado, uma loba linda e majestosa, de incríveis olhos azuis e um pêlo acinzentado com leves rajadas de tons negros ao redor do pescoço, lançava um olhar atento em sua direção. "Oi, amigo. Estava com saudades de você.", disse Carol, enquanto abraçava o Escritor, tão surpreso quanto contente por aquela visita tão inesperada. "Trouxe para você cupcakes de banana, pois eu sei que você adora", Carol apontou para o pequeno pote transparente com uma tampa lilás em cima da mesa na cozinha. "Que maravilha, Carol. Eu adoro esses seus doces, nem me lembro quando foi a última vez que comi essas delícias", disse o Escritor. Enquanto conversava com sua amiga Feiticeira Lunar, sentiu algo macio nascendo embaixo de suas botas. Um pequeno gramado japonês verdejante tomou conta do chão de sua sala de estar e trepadeiras floridas nasciam no topo de sua imensa estante de livro que ficava em um canto do ambiente. "Amigo, que bom poder te ver novamente. Fiquei sabendo através de Sérgio que você está escrevendo um novo livro, então fiquei curiosa para saber mais", disse Carol, enquanto se ajeitava, com seu vestido simples num forte tom de vinho que em alguns momentos ondulava em variações de matizes magníficas, em uma aconchegante cadeira de jardim que ficava ao lado da janela com uma vista magnífica da cidade. A loba a acompanhou e sentou-se ao seu lado, com seus brilhantes olhos azuis atentos a tudo. "Sim, é verdade. Estou escrevendo um novo livro. É uma história que eu já estava desenvolvendo há um bom tempo. Acho que já tinha comentado com você antes, mas na época era apenas uma ideia guardada em minha cabeça", explicou o Escritor, enquanto trazia duas xícaras de café e os cupcakes de banana no pote transparente, colocando-os na mesa redonda de jardim. "Então, estou curiosa, me conte", falou Carol, num tom de voz animado, demonstrando a imensa curiosidade que ela tinha em saber tudo sobre a história que seu amigo estava escrevendo. "Espere um momento", disse o Escritor, levantando o dedo indicador com um gesto amistoso, enquanto com a outra mão escolhia um dos cupcakes, "Antes de mais nada, deixe-me provar logo esse seu doce maravilhoso". Deu uma mordida generosa e sentiu os pensamentos flutuarem através de sabores muito familiares ao seu paladar, ao mesmo tempo em que observava pequenos arranjos de diferentes flores nascendo por diversas partes de seu apartamento, por entre algumas pilhas de livros espalhadas pelo chão, por toda a extensão das janelas da sala, passando por sobre a mesa onde estava seu computador, chegando até a mesa onde estavam. As imagens translúcidas flutuavam ainda, insistindo com as transmissões nipônicas, provavelmente uma interferência maluca provocada pelas borboletas que voavam sem parar.
"Vamos, me conte, não me deixe assim nessa ansiedade", insistiu a Feiticeira Lunar, com uma curiosidade viva estampada no brilho fascinante de seu olhar. "Minha história, Carol, é sobre três jovens que se envolvem com poderes obscuros depois que encontram um livro que tem o poder macabro de matar qualquer pessoa que tenha seu nome escrito nele. Existem muitos elementos emaranhando mistério, terror e sobrenatural durante toda a trama. E os três são perseguidos durante a maior parte da história", explicava o Escritor para sua amiga que aproveitou o momento em que ele tomava um bom gole de café para lançar algumas perguntas sobre o desenvolvimento da narrativa. "E nessa história, a magia está presente? Existe algum personagem mágico, bruxo, feiticeiro?", indagou Carol, tentando obter mais informações sobre a narrativa que o amigo desenvolvia. "Sim, na verdade existe uma personagem mística, mas ainda não sei ao certo até que ponto ela poderá desenvolver o potencial de magia dela. Por enquanto, essa jovem, Hemilly, apenas tem um pingente em forma de ampulheta que ela comprou por sugestão de uma amiga bruxa", o Escritor deu mais uma mordida no cupcake de banana, enquanto uma imagem translúcida com o rosto de Hemilly surgiu ao seu lado, juntamente com um perfil básico de sua personalidade. "E o que esse pingente faz? Qual é o poder que ele encerra?", perguntou a Feiticeira Lunar, ansiosa pela explicação. "Bom, esse pingente em forma de ampulheta se chama Destemporizador e dá ao seu dono a capacidade de retroceder no tempo em espaços relativamente curtos. Você não pode avançar no tempo, mas apenas voltar por algumas horas, ou alguns dias, provavelmente semanas, e permanecer no passado apenas por um breve período de tempo, mais precisamente o tempo em que a areia se esvai na ampulheta em forma de pingente. Ainda não sei como ele funciona completamente, apenas quando a história estiver se desenvolvendo eu saberei realmente mais a respeito do pingente". O Escritor fez nova pausa, pegando outro cupcake. Nesse momento, um corvo atravessou uma das janelas abertas da sala, fazendo um voo rasante e pousando meio desajeitado em cima do monitor de seu computador. Carol apoiou seus cotovelos sobre a mesa de jardim e deixou seu queixo descansar sobre os dedos entrelaçados de suas mãos. "Estou empolgada. Conte-me mais. Essa jovem bruxa tem algum tipo de poder? Ou ela ainda não desenvolveu nenhum tipo de força oculta?", questionou a Feiticeira Lunar, cada vez mais instigada com a história do Escritor Astronauta, que prosseguiu com suas explicações. "Na verdade, Carol, a jovem bruxa tem poderes que ainda não se manifestaram por ausência de um momento propício que faça essa força aflorar nela. Falta ainda acontecer uma situação de perigo real e imediato que faça com que esses poderes sejam a saída inesperada para ela se salvar ou salvar pessoas importantes em sua vida". A Feiticeira amiga continuava atenta às explicações e aproveitou a oportunidade para lançar sugestões para o amigo. "Estou adorando essa sua história. E Magia transporta a história para um outro nível, o nível da fantasia. Faz nossa imaginação funcionar freneticamente. Eu poderia sugerir uma ideia para o meu amigo poder incluir em seu trabalho narrativo?". "Lógico, Carol, ideias e sugestões sempre são bem vindas. Eu tenho certeza que sua sugestão será uma surpresa para mim", disse o Escritor, e percebeu que suas palavras deixaram Carol radiante, com um sorriso claro em seu rosto. "Amigo, assim você me deixa mal acostumada. Se deixar, eu transformo minha sugestão em uma lista imensa, hein?", disse a amiga Feiticeira, soltando uma risada festiva que contagiou o Escritor, acompanhando sua risada enquanto se deliciava com o cupcake de banana. Carol prosseguiu, "Brincadeirinha. Sua história é apaixonante, e acredito que você terá tanto a contar que pode render 3 ou 4 volumes, pelo menos. Sua personagem que tem o pingente, Hemilly, você disse que ela tem poderes que ainda não se manifestaram. E como você disse que ela é uma jovem bruxa, então que tal se ela fosse uma bruxa que dominasse os poderes da Natureza? Ela descobriria aos poucos que domina os elementos primordiais do planeta, como o ar, a água, a terra ou o fogo. Ela seria uma personagem encantadora. O que você me diz?". O Escritor Astronauta ficou segurando o cupcake em sua mão, enquanto mantinha um olhar pensativo em direção à amiga. Não demorou, e a imagem translúcida ao seu lado saiu do ar momentaneamente por microssegundos, questão de um breve piscar de olhos, e voltou, dessa vez com imagens de sua personagem Hemilly utilizando de sua força mística para mover os elementos da Natureza, assimilando completamente a sugestão dita por sua amiga Feiticeira Lunar. Olhou fixamente para a imagem flutuando e assistiu, maravilhado por longos segundos, como sua personagem desenvolvia movimentos magníficos para lançar seus poderes oriundos da terra, do fogo, da água e do ar. Começou a perceber o quanto havia adorado aquela incrível ideia, que parecia já estar incorporado completamente em sua personagem, como se, na realidade, fossem de fato esses os poderes que ela tinha desde sempre. O Escritor afastou lentamente a imagem translúcida de seu rosto, e voltou sua atenção para onde sua amiga Carol estava sentada, pronto para demonstrar toda sua euforia pela incrível ideia oferecida quando percebeu, espantado, que ela simplesmente não estava mais ali. Pela janela aberta, as borboletas começaram a sair numa revoada silenciosa e mansa. Ao seu redor, não havia mais qualquer sinal de grama japonesa pelo chão de seu apartamento, e nem trepadeiras ou flores espalhadas pelas paredes da sala. Assim que as borboletas foram deixando seu apartamento, as imagens translúcidas que pairavam por todos os cantos deixaram de mostrar transmissões de programas e noticiários japoneses, voltando a sintonizar trechos visuais e escritos de sua história. Olhou para o cupcake de banana em sua mão, deu a última mordida, e então descobriu algo escondido no fundo do pote transparente trazido pela sua amiga. Não tinha reparado um pequeno bilhete amarelo embaixo dos dois últimos cupcakes que haviam sobrado. "Não importa a história, o poder da Natureza é insuperável. Beijos de sua amiga, Carol", dizia a mensagem no bilhete. O Escritor Astronauta leu aquele breve recado, enquanto via as borboletas voando pela avenida, e então resolveu segui-las pela tarde. Colocou seu capacete, fechou mais uma vez a escotilha, desceu as escadas e encontrou a rua. Ainda podia ver as borboletas voando despreocupadas pelo céu da cidade. Continuou seguindo elas por um bom tempo, pelas ruas e avenidas, até que chegou em um viaduto e parou, pensativo. Ficou ali, vendo as borboletas voando juntas, rodopiando até sumirem no horizonte. Olhou à sua direita e viu espantado uma pequena floresta descendo por um barranco até a avenida lá embaixo. "Estranho. Eu podia jurar que só tinham prédios ali", disse o Escritor com uma leve expressão de surpresa em seu rosto, enquanto tinha novamente aquela sensação de ter atravessado alguma fronteira para um universo paralelo.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Neil Dacosta

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Cada soco que recebia era violento e potente o suficiente para marcar seu rosto com feridas e hematomas, e fazer sua boca cuspir sangue a todo golpe desferido pelo seu personagem enfurecido, que momentos antes havia partido para cima de seu criador numa fúria indomável, arrancado o capacete que poderia ser sua melhor proteção contra a brutalidade que avançava a cada murro desferido. Caído no chão ressequido daquela imensidão desértica, completamente enfraquecido pelas repetidas investidas vorazes dos punhos de Flávio, o Escritor sentia toda aquela dor lancinante, pontadas agudas que iam progressivamente deixando sua face dormente por todos os lados. "Seu filho da puta, faça aqueles dois moleques me devolverem o que me pertence agora!", dizia o personagem descontrolado, entre um soco e outro, enquanto encarava os olhos de sua vítima a poucos centrímetros de seus, escondidos atrás dos óculos escuros. A postura determinada de Flávio demonstrava que ele não descansaria enquanto não conseguisse seu Livro da Morte de volta, e cada novo golpe desferido por ele parecia ser mais perigoso e fatal para o Escritor, já completamente atordoado pela surra. Precisava agir e reverter aquela situação, e a única saída imaginada pelo Escritor era fazer uso do seu poder maior e projetar de volta para dentro da história aquele seu personagem rebelde e perigoso, fazendo ele sumir diante de si. Apesar de sentir dores sinistras percorrendo cada músculo de seu rosto, respirou fundo, fechou os olhos e se concentrou na história que estava escrevendo. Estava muito difícil, mas precisava se concentrar. Aos poucos, escutou a voz de Flávio diminuindo, sendo lentamente abafada pelo silêncio que tentava construir em sua mente, até que finalmente tudo era silêncio e escuridão. Abriu os olhos e percebeu, com uma expressão confusa se desenhando em seu rosto, que seu capacete estava intacto e ainda encaixado em seu traje. Podia ouvir sua respiração ecoando sufocada, embaçando completamente a viseira. Apoio-se no braços e permaneceu sentado ainda por um tempo. Olhou ao redor e percebeu que ainda estava naquele deserto vasto, mas agora sem a presença ameaçadora de Flávio, seu personagem descontrolado. Apoiou o capacete nas duas mãos, descobriu que não sentia mais qualquer dor aguda ou dormências em seu rosto, nem qualquer vestígio de sangue que minutos antes cuspia sem parar pela sua boca.
Calmamente levantou-se, dando um giro de 360º observando aquela imensidão desolada. Não havia absolutamente nada ali, em um raio de 30 quilômetros. Não conseguia entender por que Flávio o havia transportado para aquela paisagem erma. Perdido em pequenas dúvidas, virou-se mais uma vez e assustou-se com o que viu bem à sua frente. "Como não enxerguei você antes? Ou será que você não estava aqui até agora há pouco?", perguntou-se o Escritor, enquanto encarava lentamente aquele carro vermelho sujo e empoeirado estacionado ali diante dele, um modelo que parecia ter vindo diretamente de alguma Concessionária de veículos dos anos 90, com um chassi levemente quadrado. "Parece um Passat antigo", pensou. Focou o olhar na viseira de seu Capacete, tentando descobrir se ele estava funcionando normalmente. Quando uma imagem translúcida com a página de busca do Google apareceu deslizando pela esquerda, respirou aliviado e começou uma rápida pesquisa. Descobriu que aquele carro, na verdade, era um modelo americano de um Plymouth Sundance ano 1993. Mas não fazia a menor ideia do motivo para aquele carro aparecer ali. Preso ao limpador do parabrisa havia um papel dobrado, parecia ser um mapa daquela região. O Escritor Astronauta caminhou em direção ao carro e pegou o mapa, e depois de uma rápida examinada, descobriu no verso várias anotações escritas à mão. "São trechos de minha história!", disse, espantado, sem saber de quem poderia ser aquela caligrafia quase rebuscada. Sentiu um jorro adrenalizado percorrer seu corpo e fazer seu coração pulsar mais acelerado. "Preciso voltar para minha história! Preciso sair daqui!", pensou, angustiado ao perceber a situação no qual se encontrava. E novamente respirou fundo, procurou se acalmar, fechando seus olhos e buscando um foco concentrado na trama que estava escrevendo há semanas. Procurou, durante alguns momentos, encontrar as imagens de sua história, mas estava sendo muito difícil, era como se tivesse sofrido um desmaio súbito e tentasse acordar a todo custo. E repentinamente aconteceu, questão de microssegundos, uma imagem veio ao seu encontro tão rapidamente quanto seu pensamento poderia atraí-la. Finalmente estava de volta à história, quase exatamente do ponto onde havia parado, apenas alguns momentos antes, como um retrocesso literário-temporal de quem estava relendo o útimo trecho escrito em busca de algum erro ortográfico, alguma falha de pontuação. Encontrou toda a situação vivida pelos seus personagens surgiu nítida em HDTV diante de seus olhos. Sentiu um formigamento em seus dedos, e escutou o leve barulho de teclas sendo digitadas. Finalmente estava em processo de criação, escrevendo sentado diante do monitor de seu computador. Enquanto escrevia, escutou um som ambiente invadindo subitamente sua mente, como uma melodia de rock progressivo dos anos 70 ecoando um trecho épico servindo de trilha sonora de sua história. "De novo acontecendo isso", pensou, enquanto escutava outra música, sem qualquer aviso, inundar sua mente, assim como ocorrera há alguns dias quando escutou Arctic Monkeys invandindo seus tímpanos enquanto andava pela rua. Dessa vez viu uma imagem de áudio translúcida flutuar à sua esquerda, surgindo como se quisesse pelo menos informar ao Escritor ouvinte qual era a música que estava ouvindo. Na verdade, pela informação de tempo de duração da música, constatou que estava escutando um álbum inteiro, "Space Ritual", de uma banda britânica chamada Hawkwind.
"Hemilly interrompeu meio indignada a explicação de Henrique, 'Peraí, você está me dizendo que pegou esse livro porque você curtiu o título que estava na capa, é isso que você está tentando me dizer?'. 'Mais ou menos. Agora como eu iria adivinhar que era um livro amaldiçoado? Ou satânico mesmo?', tentou se explicar Henrique. 'Eu ainda quero entender por que essas pessoas estão atrás de vocês, e por que eles querem tanto esse livro', ponderou Hemilly. 'Eu não faço ideia. A única certeza que tenho é de que eles estão tentando pegar a gente há uns 3 dias e só hoje conseguimos despistar eles e chegar até você', explicou Henrique. Hemilly esboçou uma expressão pensativa e repentinamente voltou-se para Henrique, parando diante dele a poucos passos, 'Espere um instante! se eles estão atrás do livro, por que você simplesmente não entrega para eles?', questionou ela. Henrique dessa vez não demorou em responder, explicando que sabia do poder que estava em suas mãos e que tinha receio de que pudesse estar entregando todo aquele poder para as pessoas erradas. Além disso, ele pensou que aquele livro tivesse um verdadeiro dono, que neste momento poderia estar procurando desesperado o bem precioso que havia perdido. 'Então você acha que neste momento deve ter algum Sr. Smeagol andando angustiado pelas ruas tentando achar o precioso dele?', indagou ironicamente Hemilly, apesar de haver um tom meio questionador em sua pergunta. 'Esse Livro é muito perigoso, ele detêm um poder incrível que eu mesmo experimentei hoje. É assustador e entorpecente, como se quisesse dominar sua mente e ordenasse que você promovesse matanças e genocídios'. Henrique pela primeira vez, diante da amiga e de seu irmão, demonstrou certa ansiedade nervosa com relação a tudo o que estava acontecendo com eles. Parecia começar a entender como se iniciava o funcionamento macabro do poder daquele livro em suas mãos. Roney, ainda mantendo sua posição vigilante observando o movimento da rua pela janela da sala, percebeu a mudança estranha de comportamento do irmão mais velho e revelou sua preocupação para a amiga. 'Você precisa ajudar a gente, Hemilly. Você é a única capaz de fazer isso agora', disse Roney. Ela esboçou em seu rosto uma leve expressão interrogativa, já que não fazia a menor ideia de como poderia ajudar seus amigos a resolver aquela situação maluca. Então Roney continuou falando sem demora, 'Você pode usar aquele pingente em forma de uma pequena ampulheta para a gente tentar descobrir quem perdeu esse livro'. Hemilly espantou-se com as palavras de Roney, o que fez seu coração acelerar. Como Roney sabia de seu pingente? Ela não havia contado para ninguém desde que o adquiriu recentemente quando comprou pelo Mercado Livre por recomendação de uma amiga bruxa. Hemilly ficou meio confusa, e estava prestes a questionar como os dois irmãos sabiam de sua pequena jóia quando algo chamou a atenção de Roney pela janela. 'Gente, tem algo estranho acontecendo na rua!', disse com uma voz tensa, fazendo com que Henrique e Hemilly rapidamente corressem para observar através de frestas da cortina o que estava ocorrendo fora da casa. Os três ficaram observando silenciosos as luzes dos postes se apagarem uma por uma, enquanto pequenas descargas elétricas faziam explodir as luminárias com as lâmpadas, deixando toda a extensão da rua tomada por uma escuridão tenebrosa. Logo em seguida, as luzes das casas da vizinhança se apagaram, e não demorou muito para a escuridão tomar conta da casa de Hemilly também. Paralisados por um pavor momentâneo e instantâneo, Hemilly, Henrique e Roney enxergaram na rua um vulto se aproximando calmamente em direção à frente da casa."
O Escritor interrompeu seu processo criativo, estranhando aquele último trecho escrito por ele. Não havia imaginado aquilo acontecendo, nem fazia ideia se sua mente já tinha sugerido escrever algo semelhante na história. Tinha a impressão de que, naquele ponto, a história começava a acontecer por si mesma, sem que houvesse algum desenvolvimento de criação de sua parte ou qualquer influência sua como autor. Olhou para a imagem translúcida congelada acima de seu monitor, tentando identificar que vulto era aquele que se aproximava da casa de Hemilly. Encarou fixamente por alguns segundos largados, buscando um close do rosto encoberta pela escuridão da rua. A campainha tocou, assustando o Escritor, tirando-o de sua concentração momentânea. "Cara, como odeio essa sirene! Parece um alerta de tsunami. Preciso trocar essa campainha", resmungou, enquanto lembrava que sempre prometia a si mesmo tarefas simples que quase sempre esquecia de fazer. Levantou-se e foi em direção à escotilha. Havia uma visita na porta de seu apartamento.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman

domingo, 5 de agosto de 2012

Foi um dia surpreendentemente atípico na vida do Escritor Astronauta. Trazia nas mãos os versos de seu amigo Sérgio e ainda persistia uma leve e quase imperceptível tontura doce, que estava provocando passos flutuantes e uma leve sensação de doce de banana em sua boca. Voltou para casa sorrindo e lembrando das palavras do Poeta Espacial, um verdadeiro presente inspirador que se impregnou em seus pensamentos como uma nova centelha criativa, crescendo aos poucos e tomando conta de todo o seu ser. Suas ideias fervilhavam de maneira diferente agora, pulsando caóticas entre borboletas e pequenos buracos negros. Continuava indiferente ao mundo que o cercava, as pessoas, os carros e congestionamentos, os idosos nas praças jogando damas, e o processo criativo permanecia dentro dele, mas não pegava fogo como antes. Agora suas ideias pulsavam, girando rápidas tais quais pequenas galáxias em espirais. As imagens da história que estava escrevendo surgiram em sua viseira em sequência, atravessando seu olhar em movimentos suaves. Sentiu um avanço, um salto criativo indescritível, enquanto subia as escadas do prédio. Quase não conseguia encaixar a chave na fechadura da escotilha pela ansiedade que estava sentindo. Os lampejos criativos se multiplicaram, enquanto ele tirava o capacete, e via as imagens translúcidas tomarem conta novamente de seu apartamento. Pegou algumas anotações em cima da mesa do computador e começou a ler, enquanto despejava café em uma xícara. Por um brevíssimo momento, ouviu um som distante de dezenas de cavalos galopando pelas avenidas enquanto sentia um tremor leve invadindo o ambiente, criando pequenas ondas no café. Permaneceu alguns microssegundos imóvel, observando aquelas minúsculas ondas surgirem em intervalos regulares, e assim que o tremor cessou, virou-se e começou a observar algumas das imagens suspensas diante de seus olhos. Fundiu algumas e deletou outras, organizou outras tantas rapidamente em uma sequência preliminar. Pegou a xícara de café e foi sentar-se diante de seu computador. Assim que se acomodou em sua cadeira, a imagem do último trecho escrito surgiu diante dele, como sempre um pouco acima do monitor. Ágeis como sempre, seus dedos recomeçaram a construir a história exatamente de onde havia parado.
"Henrique admitia em seu íntimo que tinha feito algo extremamente horrível, mas infelizmente já estava feito e não tinha como reverter as ações. Hemilly ainda encarava ele com espanto. 'Você matou uma pessoa apenas escrevendo o nome dela nesse livro?', questionou. 'Eu não tive outra opção. Se eu não tivesse feito o que fiz, com certeza nem estaria aqui agora'. Ele olhou para o irmão caçula e viu em seus olhos uma expressão questionadora, como se Roney perguntasse o que fariam agora. 'Onde você encontrou esse livro?', indagou Hemilly. 'Faz um semana eu achei ele quando voltava do colégio. Estava largado lá no asfalto, numa rua perto de casa. Só peguei porque na capa estava escrito Livro da Morte e isso me deixou curioso. Como estava chovendo, coloquei ele na minha mochila e continuei correndo pra casa'. Hemilly interrompeu meio indignada a explicação de Henrique, 'Peraí, você está me dizendo que pegou esse livro porque você curtiu o título que estava na capa, é isso que você está tentando me dizer?'. 'Mais ou menos. Agora como eu iria adivinhar que era um livro amaldiçoado? Ou satânico mesmo?', tentou se explicar Henrique. 'Eu ainda quero entender por que essas pessoas estão atrás de vocês, e por que eles querem tanto esse livro', ponderou Hemilly. 'Eu não faço ideia. A única certeza que tenho é de que eles estão tentando pegar a gente há uns 3 dias e só hoje conseguimos despistar eles e chegar até você', explicou Henrique. Hemilly esboçou uma expressão pensativa e repentinamente voltou-se para Henrique, parando diante dele a poucos passos, 'Espere um instante! se eles estão atrás do livro, por que você simplesmente não entrega para eles?', questionou ela."
O Escritor parou de escrever e olhou pela janela, pensativo com a indagação inesperada feita por Hemilly. "Realmente, por que ele simplesmente não entrega o maldito livro para os agentes?", pensou em voz alta. Era tão simples a ideia que chegou a pensar angustiado que tudo aquilo que eles passaram até chegar à casa de Hemilly era completamente desnecessário. Simples demais. Era só entregar o livro, pedir desculpas e provavelmente eles deixariam os dois irmãos em paz. Entretanto, percebeu que não era tão simples assim a situação, pois Henrique suspeitava de que o livro pertencia a outra pessoa, alguém que eles precisavam encontrar o mais rápido possível para entregar de volta aquele objeto perdido. Foi nesse exato momento que o Escritor ouviu uma voz estranha ecoar atrás de si soltando uma afirmação. "Mas é claro que eles precisam me devolver o livro. Ele é meu", dizia a voz. O escritor olhou para trás um pouco assustado, pois teve a impressão de que a voz viera de sua sala. Não havia ninguém ali, e apenas o que ele conseguia enxergar eram as imagens flutuando por todo o apartamento. Ainda cismado com aquela situação sinistra, voltou-se para o computador, e concentrou-se nos sons que poderia distinguir e reconhecer facilmente. Leu em voz alta o último trecho de sua história, enquanto partes de áudio com as vozes de seus personagens eram emparelhadas próximos ao seu ouvido numa espécie de teste de reconhecimento de voz. Podia ouvir em alto e bom som a conversa entre Hemilly, Henrique e Roney, certificando-se de que não havia nada estranho ou alheio invadindo suas ideias e confundindo o desenvolvimento de sua narrativa. Respirou fundo, quando inesperadamente a voz estranha ecoou novamente atrás do Escritor. "Você não pode continuar me ignorando. Eu quero meu Livro de volta", dizia a voz em tom ameaçador. Instantaneamente levantou-se da cadeira assustado, ficando em estado de alerta, olhando para o lugar de onde estava vindo aquela voz misteriosa. Observou as imagens translúcidas flutuando, e percebeu que uma delas parecia estar fora do ar momentaneamente, produzindo um chiado incômodo que ele não havia notado antes. A imagem buscou sintonia e sincronismo com os pensamentos do Escritor, até que finalmente foi estabelecido um primeiro e nítido contato. Um rosto caucasiano, com a barba por fazer e usando um óculos escuros escondendo parcialmente uma expressão pouco amigável revelou-se, denunciando ser ele o dono daquela voz intimidadora. "O Livro da Morte é meu. Tomarei ele de volta", dizia o dono do rosto impassível, enquanto o Escritor estreitava os olhos e balançava a cabeça como quem estava aos poucos elucidando um enigma antes obscuro. "Espere um instante. Eu sei quem é você", disse. O rosto flutuou sutilmente enquanto uma névoa negra logo abaixo dele rodopiou rapidamente em espirais desgovernadas, fazendo surgir uma silhueta que se materializou em um corpo. Parado, o Escritor viu diante de si um dos personagens de sua história tomar forma e desafiar a autoridade daquele que o criou. Vestindo uma jaqueta preta, uma calça jeans surrada e um tênis Nike, ele lentamente foi em direção ao seu criador, sempre com sua voz inabalável. "Eu quero meu Livro de volta", insistia. "Eu entendo que você queira seu Livro de volta, e você o terá, Flávio. Não precisa me intimidar desse jeito, eu sei quem você é. Você apareceu no início da história rapidamente, e ninguém ainda sabe que o Livro te pertence", explicou o Escritor. "Não importa quem eu seja, eu apenas quero a porra do meu Livro de volta! Se eu tiver que matar aqueles moleques, eu matarei sem qualquer remorso", ameaçou Flávio. "Espere um pouco! Não precisa agir dessa forma. Eu já disse que você terá seu livro de volta. Eu criei você, então nem pense em dar uma de rebelde pra cima de mim", retrucou o Escritor tomando uma postura defensiva. Repentinamente, o Escritor Astronauta sentiu dificuldade em respirar, como se algo ou alguém estivesse sugando o ar ao seu redor. Sentiu uma vertigem estranha dominar o ambiente, e não demorou em buscar seu capacete antes que desmaiasse por falta de oxigênio em seus pensamentos. Quando conseguiu encaixar o capacete em seu traje, viu aquela mesma névoa negra que havia trazido seu personagem agora rodopiar ágil ao redor dos dois, de maneira agressiva e intensa, deformando o tecido temporal ao seu redor, sumindo com a sala de estar de seu apartamento. Não demorou microssegundos para enxergar uma vastidão desértica diante de seu olhar atônito. Ali, no meio do nada, estavam apenas ele e Flávio, seu personagem arredio, revoltado, agindo por conta própria. "Você não diz mais o que eu devo fazer. Você vai descobrir agora o que acontece com o filho da puta que rouba aquilo que me pertence", disse Flávio de maneira marrenta, dobrando os joelhos, cerrando os punhos, pronto para participar de uma boa briga.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Enquanto conversava amistosamente com seu amigo no Café da esquina, o Escritor Astronauta tentava se acostumar novamente com a Gravidade alterada provocada pela presença de Sérgio, uma situação que fazia muito tempo não experimentava com tanta intensidade. O Poeta Espacial provocava uma distorção anormal na força gravitacional terrestre, e tudo ao seu redor começava sutilmente a flutuar, levitando suavemente. Era algo prazeroso, fora do comum, toda aquela sensação o invadia e em alguns momentos o deixava tonto, mas ele se deliciava com a situação. Sentados na mesa, ao redor dos dois flutuavam talheres, copos, inclusive as xícaras de café que pediram assim que chegaram orbitavam ao redor de suas cabeças, deixando derramar lentamente o conteúdo em forma de gotículas preguiçosas. "Não é fantástico esse nosso átimo literário poético? Ultimamente tenho espasmos líricos incríveis. Todo o universo se despeja dentro de mim maravilhosamente e eu me sinto um poeta cosmopolita, desenhando versos falando sobre japoneses, africanos, europeus, asiáticos, uma confluência de mundos, um êxtase", explicava Sérgio, enquanto pela avenida inesperadamente começou a passar uma manada de cavalos, provavelmente uns 200 em tons variados com suas crinas fantásticas, cavalgando intensamente, atravessando os sinais vermelhos da avenida. O Escritor Astronauta escutava o amigo falando, enquanto seu olhar seguia aquela cavalgada invadindo a cidade, cortando o trânsito numa velocidade atordoante. As mesas do café balançavam sutilmente com a passagem dos cavalos, um leve tremor de terra que não podia ser captado por nenhum sismógrafo, uma energia liberada que não podia ser medida de maneira alguma na Escala Richter. "Sempre tenho acompanhado a divulgação de seus trabalhos poéticos. Quando os leio, fico sem fôlego, você escreve de maneira incrível, Sérgio", disse o Escritor. Depois que aquela manada de cavalos atravessou a avenida movimentada, um rastro de flores começou a crescer na extensão de toda rua asfaltada. "Fabuloso! Simplesmente fabuloso, divino! O poeta cria sempre a arte para que o mundo nunca duvide da existência dele. Tiramos pérolas de porcos e colhemos flores no aslfato, lançamos possibilidades de novas sensações para as pessoas que se atrevem a ler o que escrevemos", dizia Sérgio de maneira contida, porém entusiasmada. "Confesso que foi uma surpresa sua ligação e sua visita. Imaginei que não nos veríamos mais e nem teríamos uma oportunidade como essa para falarmos sobre tudo o que cada um está escrevendo", explicou o Escritor, e prosseguiu com as palavras, "Nos últimos meses tenho me dedicado especialmente ao meu novo trabalho, o que tem exigido de mim uma concentração total. Vivo cercado de ideias, os personagens habitam cada minuto do meu dia, tenho anotações espalhadas por todo o apartamento. Estou realmente em amplo processo de criação literária". Nesse momento, o escritor percebeu algumas imagens de sua história surgirem em sua viseira, e rapidamente sumirem, e depois aparecem flutuando translúcidas acima dele, imagens dos personagens, trechos escritos, passagens importantes já revisadas por ele. O Poeta espacial olhou para elas com uma expressão fascinada, extasiado com aquele material incrível já desenvolvido, enquanto dezenas de vagalumes piscantes começavam a voar dentro do ambiente do Café, desenhando luminosidades pelo teto. No Céu, por entre os prédios, uma Lua imensa começava a nascer com jeito de quem vigiava a Humanidade, deixando um rastro róseo entre as nuvens.
"Isso é fantástico, você está desenvolvendo uma história que vai encantar muitas pessoas, transportando elas para um mundo incrível. Sua maneira de escrever é cativante, diferente, hipnotiza o leitor. Simplesmente fantástico", Sérgio sorria, enquanto os vagalumes passeavam ao seu redor. O Escritor agradecia pelos seus elogios, apesar de considerar a possibilidade de que ainda havia muitos trechos a serem reescritos, e algumas partes poderiam sofrer alterações até o final do processo de desenvolvimento narrativo. "Sempre tenho novas ideias surgindo, sempre estou retornando e reescrevendo algumas partes da história, procurando não deixar buracos e nem entrar em contradições com o enredo da trama", explicou, enquanto observava algumas das imagens que mostravam personagens e trechos narrativos. "Não se preocupe, quando você é tomado pelo processo criativo, ele te possui de uma maneira entorpecente, te mandando para outros mundos, fazendo viver em outros universos e canalizar todas as informações sobre eles. E você viaja entre eles constantemente". O Escritor fez um ar pensativo, ponderando sobre as afirmações de Sérgio, e olhou para a rua. Na calçada, uma estranha distorção fazia o ar vibrar em meio a pequenos raios e um estrondo metálico fez surgir um portal, de onde saiu inesperadamente um senhor vestindo impecavelmente terno, gravata e um chapéu escondendo sua careca lustrosa. Carregava uma maleta preta e trazia na mão um objeto dourado estranho, do tamanho de um celular. Parou um instante, olhou para objeto com uma expressão de quem estava obtendo informações para confirmar seus cálculos e concluir que havia chegado ao destino certo. "Outro Observador, sempre por toda parte, como seres onipresentes, sempre analisando as situações vividas pelas pessoas em qualquer lugar", concluiu o Escritor, lembrando dos misteriosos personagens surgindo estranhamente por toda sua história. Sua atenção voltou-se novamente para o amigo Poeta Espacial, que prosseguiu falando animadamente. Um som ambiente surgiu tímido, parecia os acordes iniciais de um piano, e o Escritor reconheceu o toque de "United States of Eurasia", uma das suas músicas favoritas do Muse. Sérgio prosseguia debatendo suas ideias líricas. "Não dominamos nenhum dos 4 elementos da Natureza, mas dominamos a Dobra da Escrita, esse elemento com o qual podemos direcionar todos os outros em nossos trabalhos literários. Não há limite para o que pode ser criado através da literatura e da poesia". O Poeta Espacial pegou uma xícara que flutuava entre eles e segurou calmamente em sua mão. Não demorou muito e uma pequena labareda de fogo se incendiou dentro da xícara, sendo apagada logo em seguida por uma espiral de água surgida do nada. O Escritor continuou observando atento enquanto via aquela mesma xícara ser petrificada e virar pó, se dissolvendo completamente no ar. Na esquina do Café, um garoto careca vestindo roupas de monge soltou um sorriso para ele e sumiu rapidamente em um pequeno tornado de ventos. Sérgio então pegou um papel onde estava escrito alguns versos, os mais recentes que ele havia criado, e o entregou para o Escritor Astronauta. "Veja, eu trouxe isso para você, espero que goste, eu escrevi pouco antes de vir para cá. É disso que você precisa para continuar sempre escrevendo". O Escritor pegou o papel e começou a ler, e suavemente enquanto lia, algumas imagens translúcidas começaram a aparecer ao seu redor, mansas, sutis, mas incrivelmente envolventes. Leu emocionado aqueles versos, como há tempos não tinha lido nada igual. Viu imagens de um semeador de ventos lançando palavras por toda parte na cidade, viu uma residência habitada por pessoas de todas as partes do mundo, conversando descontraídas em todos os idiomas. Logo abaixo do poema, havia um breve texto de despedida escrito por Sérgio. Enquanto lia aquela parte em que o Poeta Espacial dizia ter adorado aquele encontro e todo o debate literário e poético que tiveram, o Escritor sentiu a Gravidade ao seu redor voltar ao normal. Lentamente tudo parou de flutuar, os talheres, as xícaras, os pratos. Os vagalumes se esvairam mansamente, e só então depois de ter lido o poema e o texto final, o Escritor percebeu que o Poeta Espacial já havia partido. "Meu amigo, foi um encontro incrível, maravilhoso, um momento raro que desfrutamos em toda sua plenitude. Espero que goste do poema e do que eu trouxe para você nessa visita: Inspiração". O Escritor terminou de ler o texto. No café não havia mais ninguém, a não ser ele a escutar o trecho final de "United States of Eurasia".

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

"Assim que Hemilly abriu a porta, Henrique e Roney entraram com passos nervosos e olhares assustados. 'O que aconteceu com vocês? Estão horríveis!', disse Hemilly, espantada e sem ação diante do avanço dos irmãos entrando em sua casa sem ao menos dizer um 'olá'. E ela tinha razão em afirmar que eles estavam horríveis. Na verdade, eles pareciam vindo de uma guerra, semelhantes a soldados fugindo de trincheiras lamacentas. Suas roupas estavam imundas, seus rostos arranhados e sujos de terra e fuligem. Henrique respirou fundo, o tempo necessário para recuperar o fôlego e contar para sua amiga tudo o que estava acontecendo com ele e Roney em um resumo fantástico que começava com 'Estamos sendo caçados', passando por 'tenho um Livro satânico que mata pessoas' e terminando com 'faça alguma coisa ou vão nos matar'. Hemilly procurou ouvir tudo atentamente, mas sempre interrompia a explicação de Henrique com inúmeras perguntas, da mesma forma que fazia com os professores no Colégio. 'Mas como vocês conseguiram escapar desses caras no prédio?', perguntou. Henrique hesitou alguns segundos antes de responder a pergunta, mas percebeu que não poderia esconder nada de sua melhor amiga e então confessou: 'Eu tive que matar um deles usando o Livro. Ele estava quase alcançando a gente'. subitamente Henrique parou de falar e olhou para seu irmão ainda assustado, que decidiu completar a explicação: 'É verdade, Hemilly. Um deles gritou o nome do outro que estava mais próximo do nosso esconderijo, e quando viu a gente, correu para nos agarrar. então Henrique simplesmente escreveu o mais rápido que conseguiu o nome do agente no livro. Não demorou 5 segundos, ele caiu no chão se contorcendo, cuspindo sangue pela boca'. Henrique permaneceu imóvel, de olhos fechados, imaginando novamente a cena sinistra. Em seguida, pegou o Livro, abriu em cima da mesa e mostrou o nome escrito com seu próprio sangue na primeira folha em branco, logo abaixo do primeiro nome que já tinha na página. 'Eu não tinha caneta', disse num tom quase sussurrante, olhando fixamente nos olhos espantados de Hemilly".
Subitamente o Escritor Astronauta parou de escrever, assustado com um barulho que vinha atrás de si. Uma esfera luminosa do tamanho de um punho fechado pulsava luzes de cores variadas, enquanto emitia um barulho desesperado semelhante a um telefone antigo. A imagem translúcida acima do seu monitor congelou no exato momento em que Henrique segurava o livro aberto em cima da mesa e olhava fixo para sua melhor amiga. Visivelmente chateado por ter sido interrompido em seu fluxo criativo de desenvolvimento narrativo, respirou fundo, bebeu o último gole de café de xícara, levantou da cadeira, afastou as imagens suspensas ao seu redor e foi em direção à esfera luminosa flutuando no meio da sua sala. Ao aproximar-se da esfera, a mesma parou de pulsar e de tocar desesperadamente como um telefone irritante. Em seguida, ouviu uma voz entrecortada por leves chiados de interferências tentando manter contato. "Alô!... está aí?... está me ouvindo?... tem um tempinho sobrando para falar com seu amigo distante?", dizia a voz insistentemente. O Escritor parou, espantado, tentando reconhecer quem estava entrando em contato imediato com ele. Ainda em silêncio, continuava a ouvir a voz falar, "Alô?... Alô!... Você vai fazer eu falar alô de novo? Alô!... Será o benedito? Terra chamando Marte! Ô seu moço, responde aí... Vamos conversar!". Ao ouvir aquelas frases, a expressão de espanto no rosto do Escritor se acentuou. "Será que é quem eu estou pensando que seja?", indagou-se pensativo. Aproximou-se mais da esfera, esperou aquela voz parar de falar tantos "alôs" e respondeu: "Sérgio? É você?". Meio segundo depois ouviu a resposta em tom descontraído: "Criatura espacial, até que enfim respondeu! Preciso saber como está. E a história que você está escrevendo?". "Eu estou bem, na verdade bem ocupado escrevendo", disse o Escritor. "Eu te interrompi? Que maldade a minha, desculpa, meu amigo!", Sérgio soltou uma risada e continuou a conversa. "Precisava entrar em contato. Escrevi alguns trechos poéticos e queria mostrar a você. É uma viagem alucinante e cósmica, você precisa ler!". Enquanto Sérgio falava, soltava risadas descontraídas entre suas frases, fazendo o Escritor se descontrair e se envolver naquele diálogo entre dois amigos que não se viam há muitas eras cósmicas que podiam ser condensadas em alguns anos. "Como você me achou?", questionou sorrindo o Escritor. "Com o olho que tudo vê", brincou Sérgio, soltando uma outra risada contagiante. "Sauron?", perguntou o Escritor descontraidamente, fazendo as risadas se prolongarem mais alguns segundos. Então lembrou-se do sonho terrível da noite anterior, "Sérgio, você nem faz ideia do pesadelo que eu tive noite passada". O Escritor começou a relatar o pesadelo no qual ele descobria que a história que estava trabalhando já tinha sido criada. Continuaram conversardo por mais alguns minutos a respeito desse assunto e também sobre o desenvolvimento dos trabalhos literários de cada um, o Escritor com seu livro e Sérgio com seus versos líricos e psicodélicos, quando o amigo distante inesperadamente interrompeu a conversa e disse, "Espera um instante. Espera só um instante... Sim, acho que estou descobrindo o destino final do sinal que te enviei. Espere um momento, estou quase descobrindo... só um instante. Estou rastreando a ligação. Quase lá... Pronto! Espero que o GPS tenha me dado as coordenadas corretas. Olhe pela janela de seu apartamento". O Escritor, meio surpreso, foi até a janela e viu seu amigo na calçada, o Poeta Espacial com seu traje dourado, acenando. "Desça, vamos ali tomar um café e trocar algumas ideias", ouviu Sérgio dizer através da ligação.

Escrito por Ulisses Góes
Pintura Fotorrealista: Jeremy Geddes

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Depois do ruído que quase estourou seus tímpanos, e das imagens que surgiram insistentes em sua viseira, o Escritor Astronauta iniciou a busca pela interceptação definitiva daquele sinal estranho com imagens que aos seus olhos pareciam familiares. "Não é possível. Isso está vagamente parecido com o que estou escrevendo", pensou. Sim, era familiar, e era difícil para ele admitir tal afirmação, ainda mais estando ciente de que ele tinha certeza absoluta de que sua ideia era original, e que ele não havia encontrado nada similar em suas pesquisas e varreduras antes de começar a escrever sua história. Tinha a consciência tranquila quanto a isso. Havia algo de errado nessa interferência que ele estava recebendo e precisava encontrar a fonte para entender o que estava acontecendo de fato. Caminhou lentamente pelo corredor do supermercado, enquanto escutava duas vozes vinda do outro lado das prateleiras conversando animadamente, um debate bastante amistoso. Avaliou as possibilidades de sincronia com a interferência de poucos segundos atrás e constatou ser ali a origem da mesma. Aqueles dois jovens parados na sessão de bebidas, debatendo sobre trechos de uma história que leram na internet enquanto escolhiam se comprariam uma garrafa de vodka ou conhaque, eram eles que estavam, sem saber, enviando aquelas interferências visuais que apareciam na viseira de seu capacete. Espiou com cuidado os dois jovens antes de entrar pelo corredor com passos fingidos de quem procurava algo naquela sessão do supermercado. Parou ao lado dos dois, olhando as bebidas na prateleira, mas com sua atenção toda voltada para a conversa. Sintonizou o máximo que conseguiu naquele debate de ideias e visualizou as imagens agora em HDTV. "A batalha psicológica entre os personagens é muito foda", dizia um deles empolgado, enquanto o outro concordava e continuava. "Demais! E eu faria o mesmo que o personagem que encontrou o livro faria, escreveria o nome de todos os assassinos, estupradores e ladrões nele, e livraria o mundo de todos eles. Usaria o Livro da Morte para matar todos eles". O escritor ficou completamente imóvel, sua mão segurando uma garrafa de vinho chileno, enquanto ele era possuído por um pensamento congelante. "isso não é possível! Eles estão falando a respeito de um Livro da Morte! O mesmo livro que meu personagem encontrou e que é a causa maior de todo seu sofrimento! Mas como?". Não demorou muito e em sua viseira apareceu uma imagem translúcida de como ele imaginou ser o Livro maldito. Coincidentemente, os jovens começaram um diálogo explicativo a respeito de como era visualmente o suposto Livro da Morte, e logo a imagem deste outro surgiu diante dos olhos do Escritor. De imediato percebeu que os livros não eram idênticos na aparência, mas sim, muito diferentes. "Mas ainda assim se trata de livros com a mesma natureza mortal, demoníaca", pensou. "Não é possível! Eu fui extremamente cuidadoso em minhas pesquisas e varreduras, e não encontrei nada que pudesse indicar que minha história pudesse ser um completo plágio de alguma outra. Será que deixei passar alguma informação, será que cochilei em algum momento enquanto fazia o rastreamento de dados?". A ideia de que toda a história que ele havia escrito até aquele momento poderia acabar incinerada completamente o deixou aturdido, fazendo-o sentir toda a força da Gravidade comprimindo seu corpo contra o chão. Sentiu uma tontura e procurou se apoiar na prateleira. Seu capacete bateu contra as garrafas à sua frente, o que chamou a atenção dos jovens. "O senhor está bem?", perguntou um deles de maneira solícita. "Sim, sim, estou. Foi apenas um leve tontura. Agradeço a preocupação", respondeu o Escritor. Os dois jovens responderam educadamente e se afastaram, cada um levando uma garrafa de vokda e outra de conhaque.
O Escritor permaneceu ali parado na sessão de bebidas por alguns segundos, tentando assimilar a situação. Pensou em seguir os jovens e perguntar a eles a respeito da tal história que eles estavam conversando, mas novamente sentiu aquela estranha distorção no tecido do espaço-tempo. Seu pensamento foi lento demais, e os jovens já haviam pagado pelas bebidas e saído do Supermercado. "Isso não pode estar acontecendo", sussurrou o Escritor, desolado. A imagem daquele livro descrito pelos jovens ainda flutuava em sua viseira, nítida, desafiadora, audaciosa, como se estivesse confrontando diretamente todo o seu poder imaginativo e criativo. Seria possível que outra pessoa já tivesse criado aquela ideia que ele tinha tanta certeza que era completamente original? Balançou o capacete, deixando as imagens sumirem lentamente. Foi nesse momento que algo surreal começou a acontecer. Começou a escutar um barulho estranho ecoando por toda parte ao seu redor. Parecia estar vindo de todos os cantos do Supermercado. Ainda parado, dessa vez com uma leve expressão de espanto, tentou prestar atenção ao estranho "som ambiente". Parecia o som de uma televisão ligada em um canal de noticiários. O escritor ficou confuso, pois o som começou a aumentar gradativamente, e agora ecoava dentro de sua mente. Olhou para os lados, e percebeu que não havia mais ninguém dentro do Supermercado. Todos haviam sumido misteriosamente. Sentiu um estremecimento estranho, e repentinamente tudo escureceu. Sentiu seu corpo paralisado, e isso o deixou completamente assustado, pois ainda conseguia escutar claramente o som daquela TV ligada, a voz do apresentador falando sobre um blecaute de energia ocorrido na índia atingindo 600 milhões de pessoas. Era como se estivesse de olhos fechados. Aturdido com aquela situação sinistra, sentiu sua respiração ficar ofegante dentro do capacete. Quase sem ar, debateu-se na escuridão, até que conseguiu abrir os olhos e respirar aliviado. Olhou ao seu redor, meio confuso, tentando entender o que estava acontecendo. Sentou-se no sofá, bateu a mão em seu capacete, viu a televisão ligada em sua frente. Estava passando o notíciario das 22 horas. "Maldição! Sempre tenho pesadelos quando deito nesse sofá para ver TV", resmungou revoltado. Não fazia ideia de como havia adormecido antes de ir ao Supermercado fazer as compras. E para piorar, ainda continuava sem café em casa.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman
 
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