domingo, 9 de dezembro de 2012

De olhos fechados, o Escritor Astronauta degustou o último gole do chá de hortelã feito por Carol. Ainda podia sentir o gosto morno descendo pela sua garganta, enquanto sua mente permanecia invadida por centenas de borboletas azuis voando mansas em um céu branco e silencioso. Já não escutava a voz de sua amiga, que ficou cada vez mais distante, como se ela estivesse se distanciando aos poucos, lentamente, até se tornar apenas uma lembrança ecoando em sua memória. Abriu os olhos e percebeu que não estava mais na casa de sua amiga Feiticeira Lunar. Estava em seu apartamento, sentado diante de seu computador, o cursor piscando em uma página em branco, esperando pela suas próximas palavras que dariam continuidade à história que estava desenvolvendo. Voltou um pouco a história e leu as partes mais recentes que havia escrito, e depois da leitura mental, olhou para as imagens translúcidas ao seu redor, que mostravam imagens dos personagens no momento em que a narrativa havia parado, além de trechos rascunhados de sua história, e com alguns toques de seus dedos fez todas elas próximas desaparecerem. Limpou sua mente de todas as ideias que tivera até o momento, e continuou a projetar um céu branco, dessa vez sem borboletas azuis voando suaves. Por medida de segurança, colocou seu capacete, travando-o firmemente em seu traje. Concentrou-se por alguns segundos, visualizando o momento derradeiro onde havia deixado seus personagens, e então começou a escrever sem parar, em uma velocidade intensa e atordoante.
"Hemilly, Henrique e Roney enxergaram na rua um vulto se aproximando calmamente em direção à frente da casa. Silenciosos e assustados, observavam enquanto aquela pessoa estranha e sinistra passava pelo portão, caminhava pelo jardim, parando próxima à entrada por alguns segundos, como se estivesse procurando se certificar de que estava exatamente onde deveria estar. A escuridão que tomava conta de tudo ao redor do quarteirão impedia que os três jovens escondidos conseguissem ter uma visão nítida do estranho, mas conseguiram distinguir, na sua silhueta camuflada na penumbra escura, que ele trazia os cabelos presos em um rabo de cavalo e segurava uma espécie de espada em uma das mãos. 'Roney, você consegue descobrir algo sobre ele?', sussurrou Henrique para o irmão, que olhava fixamente para o estranho lá fora. Hemilly virou o rosto para os dois irmãos, sem entender direito aquela pergunta. Roney permaneceu imóvel, quase prendendo a respiração, o olhar fixo lá fora, concentrado demais para responder a pergunta de Hemrique naquele momento. 'O que está acontencendo, Roney?', questionou Henrique num tom nervoso. 'Como assim descobrir algo? Não estou entendendo', indagou Hemilly, olhando insistentemente para Henrique. Nesse momento, Roney caiu ofegante de joelhos no chão da sala, as mãos sustentando o corpo que parecia enfraquecido por uma tarefa extenuante. Henrique agachou-se, segurando seus ombros e percebendo a testa do irmão umedecida por um suor discreto. 'O que houve? Tá tudo bem com você?', perguntou, procurando os olhos do irmão mais novo. 'Sim, eu estou bem. Acho que me esforcei demais agora, mas estou bem', respondeu Roney, fazendo uma breve pausa enquanto levantava-se com a ajuda de Henrique, para em seguida explicar que não conseguiu descobrir nada. 'É como se não existisse nada... eu só enxergava uma escuridão sufocante...'. 'Vocês estão me assustando! Do que seu irmão está falando? Que história é essa de não conseguir descobrir nada e de ver uma escuridão sufocante?'. Os irmãos se entreolharam em silêncio, e depois de um sinal de confirmação de Roney, Henrique virou-se para Hemilly e disse com um tom discreto de confissão, 'Meu irmão tem a capacidade de ler os pensamentos das pessoas'. A jovem garota fez uma expressão de espanto diante dos dois, quase rindo, quando eles escutaram uma voz soturna e desconhecida ecoar ali na sala, 'Então é aqui que vocês estão. Não foi difícil encontrar vocês dessa vez'. Repentinamente as luzes da casa voltaram a funcionar, e todos os ambientes se iluminaram a tempo deles presenciarem um estranho fenômeno acontecer. Uma das paredes da sala começou a se dissolver continuamente em uma névoa sombria, como se o concreto naquele ponto se tornasse instável, inconstante. Então surgiu inicialmente um rosto caucasiano com uma barba por fazer, usando um óculos escuros delineando uma expressão nada amigável".
O Escritor Astronauta parou atônito, olhando pasmo para o texto digitado de sua história. Flávio não perdeu tempo. Esperou pela continuidade da narrativa para então agir como bem queria dentro do enredo. O escritor precisava agir o mais rápido possível, ou aquele personagem rebelde e descontrolado destruiria a todos naquele momento, sem tempo para uma próxima página ser escrita.
"O rosto flutuou sutilmente enquanto uma névoa negra logo abaixo dele rodopiou rapidamente em espirais desgovernadas, fazendo surgir uma silhueta que se materializou em um corpo. 'Tudo ficou mais fácil depois que descobri toda a verdade sobre nossas existências. Só precisei aguardar paciente por aquele filho da puta continuar com toda essa história imbecil'. Flávio agia exatamente da mesma maneira que havia feito quando encontrou pela primeira vez o seu criador. Arrogante, perigoso, cego para reaver o poder que emanava do Livro da Morte que estava nas mãos de Henrique naquele momento. 'Hemilly, Henrique, Roney. Eu conheço vocês, e sei que um de vocês tem algo que me pertence', disse Flávio, aproximando-se lentamente dos três jovens, ainda aturdidos com aquela aparição sinistra e inesperada. 'Quem é você? De onde você surgiu? E como sabe quem somos?', perguntou Hemilly assustada. 'Eu sei quem ele é', disse Roney com um olhar fixo em Flávio, penetrando em sua mente sem medo e obtendo as informações sobre o estranho de palavras ameaçadoras, 'Ele se chama Flávio e é a pessoa que perdeu esse livro maldito. Ele está atrás da gente há alguns dias e quer o livro dele de qualquer maneira'. 'Exatamente, seu pirralho idiota. Nem essa sua aberração me assusta, pois eu sei a razão para isso. Eu sei porque você tem esse dom de ler as mentes dos outros. Você quer saber por que você é assim?'. Flávio se aproximou devagar, com passos mansos e atitudes suspeitas. Roney continuou olhando fixo para o rosto de Flávio, lendo seus pensamentos, e quando obteve mais informações, o garoto arregalou os olhos e disse assustado, 'Ele pretende matar a gente assim que pegar o livro!'. 'Você não precisava ler a minha mente para saber que eu faria isso. Além do mais, não se preocupem com suas vidas ridículas. Na verdade, eu, vocês e todo esse mundo só existe dentro da mente de um maldito filho da puta que pensa que agora tem o controle de nossos destinos', dizia Flávio, parando no meio da sala, enquanto olhava atentamente para a névoa negra que rodopiava ágil ao seu redor. Com seu olhar de uma loucura psicótica, direcionou a névoa para uma de suas mãos, e viu materializar-se rapidamente uma pistola Colt 45 prateada, com a qual apontou para Henrique sem perder tempo. 'E agora, você vai devolver a porra do meu livro, ou terei que sujar ele com o sangue de vocês três?'. Henrique encarou Hemilly e mexeu os lábios lentamente, dizendo silencioso a palavra 'pingente'. Ela entendeu a mensagem, levando a mão contra o peito, procurando o Destemporizador escondido por baixo de sua blusa. Ela o puxou pela corrente até que sua mão agarrou o pingente em forma de pequena ampulheta. Flávio desviou sutilmente o olhar de Henrique e apontou a arma para Hemilly. 'Desculpe, mas o tempo está contra você agora, e eu estou sem paciência'. Flávio disparou um tiro da sua Colt no mesmo instante em que Hemilly sacudiu o pingente, criando uma onda temporal ao redor deles e que se propagou por todo o ambiente, distorcendo a velocidade do tempo naquele espaço. Assim que a bala encontrou as ondas criadas pelo pingente, sua velocidade diminuiu astronômicamente, fazendo com que o projétil atravessasse o ar em slow motion, tão lentamente que podia se enxergar a trajetória do rastro deixado pela bala. 'Tire a gente daqui agora!', gritou Roney para Hemilly. Ela entendeu o recado e aproximou dos dois irmãos, envolvendo a todos na corrente do pingente. A onda continuava a se propagar pelo ar, e havia atingido Flávio, deixando seus movimentos pesados e cadenciados pelo retardo do tempo. Assim que Hemilly girou a ampulheta duas vezes seguidas, uma aura brilhante dourada circundou ela e os irmãos, eles ouviram um estrondo sonoro implosivo, e em seguida um pequeno buraco negro começou a se formar na mesma parede de onde havia surgido, momentos antes, a figura ameaçadora de Flávio, que agora movimentava-se com dificuldade. Confusa com aquela situação anormal, Hemilly não sabia o que realmente estava acontecendo, e nem por que surgiu aquele pequeno buraco negro na sala de sua casa. 'Não era pra isso acontecer!', gritou ela para os dois irmãos, 'Eu não entendo! Não estamos voltando no tempo!'. Enquanto eles permaneciam inertes dentro da aura brilhante, tudo ao redor começou a ser sugado pelo buraco negro, a começar pela própria onda de retardo temporal que ainda se propagava. Não demorou dois segundos para que todos os móveis fossem arrastados para dentro do buraco na parede. Flávio olhou desesperado para o que estava acontecendo, seu coração disparado enquanto ele gritava para todos os lados, 'O que você está tentando fazer, seu filho da puta idiota? Você pensa que vai me destruir assim tão facilmente? Eu sei de tudo o que vai acontecer na história tanto quanto você. Eu guardei todos os spoilers soltos sobre essa sua história imbecil!'"
O Escritor Astronauta parou de digitar, os dedos pousando a poucos milímetros do teclado, seu coração também acelerado pelo momento crucial que o envolvia agora naquela história com seus personagens e pelo perigo que aquela atitude ousada representava. Respirou fundo, e depois de ler as vociferações de Flávio nas últimas linhas, soltou um sorriso malicioso, mostrando contentamente pelo plano que havia criado estar funcionando perfeitamente. "Eu enganei você. Apaguei todas as minhas anotações sobre a história, e os spoilers que você capturou não eram meus realmente. Eram ideias de Carol que eu não usaria. O spoiler que você tem sobre esse momento da história é falso".
"Flávio, ainda conectado à mente do Escritor, escutou aquela revelação com uma expressão de pavor, que se transformou em desespero ao perceber que havia caído em uma armadilha do seu criador. 'Você não pode se livrar de mim, seu filho da puta! Você mesmo sabe que eu sou importante para o desenvolvimento dessa história maldita!', gritava, tentando agarrar-se em qualquer coisa para não ser sugado por aquele buraco negro. A voz onisciente do seu criador ecoou mansa em sua mente aturdida, largando novas revelações sobre o que estava acontecendo naquele ponto da narrativa, 'Mas eu não vou me livrar de você, Flávio. Você apenas será substituído por uma outra versão sua, vinda de um universo paralelo, uma versão que desconhece a minha existência. O que está atrás de você não é um buraco negro realmente. É um portal para um outro universo paralelo ao seu'. A névoa negra que envolvia o personagem rebelde da história sumiu rapidamente dentro do negrume espiral. Um a um, os móveis foram arrastados, e por fim, Flávio gritou diversos palavrões abafados pelo som assustador daquele portal aberto na parede, até ser também sugado pelo buraco negro e desaparecer completamente sem deixar rastros de sua existência. Então o portal drenou a si mesmo, sendo engolido pela sua própria força destruidora, sumindo logo em seguida, deixando apenas uma força pulsante e luminosa em seu lugar. Hemilly, Henrique e Roney permaneciam protegidos dentro da aura dourada criada pelo pingente, até que em questão de microssegundos, eles também desapareceram no ar, deixando apenas um rastro dourado flutuando no exato lugar onde eles estavam juntos momentos antes. Naquele momento, o estranho visitante soturno, que havia permanecido o tempo todo parado, exatamente imóvel do lado de fora da casa, se permitiu entrar no local. Atravessou a porta como se ela simplesmente não existisse e parou diante da sala agora vazia. Uma penumbra sinistra o envolvia, tornando impossível para qualquer pessoa dicernir sua fisionomia com exatidão naquele momento. Dissolvida sua imagem numa escuridão protetora, vagamente era perceptível seus olhos de pupilas vermelhas brilhantes e sua silhueta envolta numa indumentária preta com sua mão segurando uma katana. Ele observou a força luminosa pulsante deixada pelo portal criado e o rastro dourado flutuante da viagem temporal realizada por Hemilly, Henrique e Roney. Sua presença naquele local deixou aqueles dois rastros de força espaço-temporal instáveis, fazendo eles se aproximarem um do outro de maneira perigosa. O estranho visitante continuou observando a aproximação das forças com um olhar impassível, avaliando silenciosamente tudo o que ocorreu ali, até dar um passo para trás e desaparecer no ar através de sua névoa negra, girando silenciosa e rápida, um segundo antes da colisão dos rastros de forças gerar uma explosão de energia transdimensional".
O inesperado então ocorreu com o Escritor, que não imaginava que aquela explosão em sua história ultrapassaria as fronteiras literárias e o atingiria em cheio, arremessando-o pela janela de seu apartamento, fazendo-o cair do outro lado da rua, diante do olhar curioso de um pombo.

Escrito por Ulisses Góes
Pintura Fotorrealista: Jeremy Geddes

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Após aquele bloqueio criativo desenvolvido numa lógica temporal difícil de se compreendida, onde os dias podiam ser condensados em frações de microssegundos, um silêncio profundo se firmou por todo o ambiente do apartamento do Escritor Astronauta. Ele sentia um gosto amargo de tempo perdido quando se recordava da experiência vivida há poucos momentos atrás, como se tivesse vivido uma vida durante um simples piscar de olhos. Levantou-se vagarosamente, e por segurança, colocou seu capacete. Depois das duas tentativas perigosas de Flávio, queria realmente se certificar de que não seria pego novamente desprotegido vagando em suas ideias e pensamentos. Precisava voltar a escrever o quanto antes, já que sabia exatamente a razão de todos aqueles ataques de seu personagem rebelde, que estava disposto a tomar qualquer atitude para impedir que pudesse prosseguir com a história da maneira como queria. O questionamento maior do Escritor era como fazer para seu personagem esquecer tudo o que ele descobriu e voltar a seguir o curso de própria vida dentro da história. "Como eu faço para Flávio esquecer que ele é fruto de minha mente de escritor?", perguntava-se intrigado e ciente de que, enquanto Flávio soubesse que era personagem de seu livro, ele continuaria sua perseguição implacável e encontraria outras formas ardilosas de atrapalhar o desenvolvimento da trama. Pensou em reescrever a parte em que ele descobre sua existência enquanto escritor e seu criador, mas acabou concluindo que de nada adiantaria pois se Flávio foi capaz de se conectar com seus pensamentos uma vez, muito provavelmente ele acabaria fazendo isso outras vezes no desenvolvimento da narrativa, tornando-se uma constante dor de cabeça para terminar o livro. Na verdade, a conexão criada entre ele e Flávio era o elo que sempre denunciaria todas as suas ideias em relação ao livro e à história. Pegou a estranha caneta utilizada para esconder trechos de seus textos e guardou novamente no pequeno estojo excêntrico, segurando-o enquanto olhava para as imagens translúcidas flutuando sempre pelo seu apartamento, observando os trechos já escritos, além de alguns rascunhos de ideias para serem utilizadas posteriormente. Entre as ideias escritas, leu um nome: "Thales". Sentiu uma pequena dor pontiaguda em sua nuca e subitamente sua mente foi invadida por flashes rápidos de imagens viajando na velocidade de descargas elétricas de seus pensamentos soltos. Não conseguia visualizar com total precisão dada a dificuldade em prendê-las como lembranças por mais de meio segundo. Viu uma mão branca segurando algo que parecia ser uma espada, ou uma katana. Viu uma fumaça negra dançando rápida e sutil ao redor de um vulto com feições pálidas e olhos vermelhos como sangue com um olhar tão penetrante que o assustou. Balançou a cabeça, e as imagens em flashes dissiparam-se completamente, ao mesmo tempo em que pequenas borboletas azuis silenciosamente invadiram o interior de seu capacete, bloqueando totalmente sua visão. Sem fazer a menor ideia de como elas conseguiram entrar em seu traje, o Escritor assustado cambaleou, tropeçando em seus próprios passos e caindo para trás. Deitado no chão, sentiu um aroma fresco de flores do campo que exalava das borboletas invasoras de capacetes, e imediatamente deduziu que tudo aquilo poderia ser obra de sua amiga Caroline, a Feiticeira Lunar. Demorou alguns segundos para que as azuladas voadoras silenciosamente desaparecessem como surgiram, de uma maneira misteriosa, inexplicável. Uma claridade mansa cegou a visão do Escritor que, ainda deitado, enxergou no teto uma abóbada de onde pendiam trepadeiras ornadas de flores maravilhosas. "Mas onde eu vim parar?", indagou confuso, ao levantar-se e perceber que não estava mais em seu apartamento. Olhou ao redor com um expressão de completa estranheza. Tirou o capacete e sentiu fragrâncias de flores do campo por todo o ambiente, perfumes variados flutuando pelo ar carregados por luminosidades coloridas refratárias provenientes de todos os cantos daquele salão amplo. Havia plantas por toda parte, a maioria crescendo dentro de carcaças de monitores antigos de computadores. Nas paredes, algumas pinturas exóticas com imagens de deuses orientais, celtas e egípcios e naturezas exuberantes, espadas antigas e floretes compartilhavam espaço com panelas de cobre e variadas colheres de pau penduradas em ordem aleatória de tamanhos e cores. O Escritor caminhou em direção a uma prateleira com diversos frascos coloridos com óleos e essências de variadas plantas com nomes desconhecidos para ele. Ali próximo, uma estante de livros chamou a atenção do Escritor Astronauta pelos seus títulos misteriosos como "O Uso Secreto das Ervas", "Conhecimento sobre Solos", "Livro das Sombras", "Símbolos do Antigo Egito", "A História das Tradições Milenares". A maioria mostravam suas capas duras envelhecidas pelo tempo e páginas amareladas e rasgadas nas bordas. Ali perto, em um sofá aconchegante cheio de almofadas de crochê, uma gata dormia preguiçosa, indiferente à sua presença inesperada. Passou por um pequeno e bem cuidado jardim circular que ficava exatamente logo abaixo da abóbada no teto. Entre as plantas, uma estátua de uma figura feminina quase completamente coberta de folhas, musgo verde e flores. Aos seus pés, escondida pelas ramagens, havia uma pedra onde podia se ler esculpida o nome "Gaia". O Escritor, cativado pelo sossego daquele ambiente impregnado de aromas floridos, começou a deduzir que aquele lugar era o lar de sua amiga Caroline. Silencioso e sem alarde, flutuou em direção a um espaço que parecia ser uma cozinha, mas que se assemelhava a uma pequena estufa, onde a natureza crescia por todos os cantos despreocupada. Um bule branco com água parecia esquecido na labareda azul de um fogão muito antigo. No centro, uma imensa mesa de madeira com pés de ferro, coberta por uma toalha estampada com flores e borboletas, era ocupada por uma bagunça mirabolante de pequenas sacolas de veludo, pedras preciosas, diversas velas aromáticas acesas, papéis com desenhos de runas e talismãs, mais alguns livros antigos abertos, um prato com alguns cupcakes e um notebook ligado, com uma página de uma rede social aberta. Quando aproximou-se a tempo de conseguir ver o perfil online da Feiticeira Lunar, sentiu a fragrância de flores do campos se acentuar pelo ar e a voz conhecida e amistosa de sua amiga Caroline atrás de si o fez estremecer num susto discreto.
"Oi, amigo! Que bom que eu consegui trazer você até minha humilde moradia", disse a Feiticeira Lunar animada, abraçando-o em seguida. "Oi, Carol. Imagino que você possa me explicar como eu vim parar aqui em sua casa", questionou o Escritor, curioso. "Sim, eu posso. Foi por causa de minha caneteira". "Caneteira? Como assim caneteira?", perguntou o amigo, confuso. "Essa que está em sua mão. Ela é minha caneteira, e é utilizada para guardar segredos e esconder textos que tenham uma natureza confidencial, secreta. Dependendo dos motivos, a pessoa que esconde os textos os torna ocultos até para quem os escreveu, fazendo a pessoa esquecê-los completamente. Eu estava mexendo em algumas caixas hoje e senti falta dela. No mesmo instante em que dei por falta dela, a caneteira se teletransportou de volta para cá e trouxe você junto.", explicou Carol, enquanto pegava o pequeno estojo da mão do Escritor, que tentou explicar o motivo daquela caneta estar em seu poder. "Essa caneteira foi usada pelo personagem de meu livro para esconder um trecho importante da história". A Feiticeira Lunar olhou um tanto supresa para o amigo, que passou alguns minutos explicando para ela tudo o que havia acontecido entre ele e o personagem Flávio, desde o primeiro encontro ameaçador entre eles em seu apartamento, passando pela luta massacrante no deserto, até a descoberta de seu texto escondido naquela caneta estranha. "Seu personagem descobriu sua origem e criou uma conexão com você? Então a situação é preocupante. Se ele descobriu o elo que os une, ele pode fazer qualquer coisa para impedir você de seguir adiante com seu livro, como, por exemplo, invadir minha casa e surrupiar minha caneteira, ou até de induzir você a escrever a história da maneira dele. Isso significa que ele se tornou uma entidade viva que pode acabar com todos os outros personagens, enfim, tornar seu livro uma catástrofe completa", disse Caroline, extremamente preocupada. "Eu não posso continuar escrevendo até encontrar uma maneira de anular totalmente esse elo que existe entre a gente". "Por que você simplesmente não elimina o personagem de sua história?", perguntou a Feiticeira Lunar, enquanto pegava o bule e derramava a água fervida em duas xícaras cheia de pequenas folhas de hortelã. "Eu não posso. Ele é importante para o desenvolvimento da história. Sem Flávio, tudo que criei fica sem sentido", respondeu o Escritor, soltando o suspiro de desânimo. Enquanto tomava o chá oferecido pela amiga Feiticeira Lunar, olhou para o teto da cozinha-estufa e descobriu uma coruja de um branco acinzentado com dispersos penachos pretos dormindo escondida em um canto, entre vasos suspensos de plantas exóticas. "Eu não sei como isso foi acontecer. Como Flávio conseguiu abrir essa conexão entre dois mundos? O universo dele sequer existe, é uma criação de minha mente!", questionou o Escritor, bebericando o chá. "Provavelmente você esteja enganado quanto ao mundo dele não existir.", ponderou Caroline. "Como assim enganado?", indagou o escriba, confuso. "Eu sempre imaginei os escritores como pontes de ligação entre universos distintos, que existem em dimensões separadas, ou paralelas. Vocês tem o dom de visualizar estes mundos como fruto de suas imaginações frenéticas, e acabam criando histórias baseadas neles. Essa conexão possivelmente poderia ter ocorrido com qualquer outro personagem de sua história. Acabou acontecendo com Flávio", explicou a Feiticeira. "Se o que você diz realmente for verdade, isso significa que Henrique, Roney e Hemilly estão em perigo real por causa de Flávio, e eu inevitavelmente vou escrever a história da maneira como ele fará, e não como eu penso que seja.", afirmou o Escritor, que ficou aflito ao ver Caroline concordando com tudo o que ele havia dito. "Agora, pensando sobre essa incrível conexão entre os mundos, eu começo a imaginar que a resposta para o problema que você tem seja exatamente esse.", disse Caroline, mordendo um dos cupcakes de banana que estava no prato ao lado de seu notebook. O Escritor olhou para ela silencioso com uma estampada expressão interrogativa em seu rosto. "A sua única alternativa é abrir um buraco para um universo paralelo", a Feiticeira sorriu com a frase dita e prosseguiu com sua explicação, "Pense bem, o que aconteceu entre você e Flávio foi uma conexão entre mundos. Claro, mundos diferentes, pessoas diferentes. Então, se isso foi possível acontecer, você pode fazer acontecer dentro da sua própria história. Você só precisa criar uma possibilidade de ser aberto um portal dimensional para um outro universo paralelo ao universo dos personagens de seu livro." Os olhos do Escritor imediatamente se iluminaram, pois não demorou muito e ele já desenvolvia, a partir da ideia inicial de Caroline, todo o desenrolar dos fatos subsequentes. Entretanto, Caroline impediu que a imaginação do Escritor se desenvolvesse e estalou os dedos bem diante de seus olhos, tirando toda a sua concentração das ideias que se formavam previamente em sua cabeça. "Não! Não faça isso agora. Não imagine nada. Esqueceu que Flávio fica sabendo de tudo o que vai acontecer na história no exato momento em que você imagina tudo em sua mente? Relaxe, respire fundo. Dessa vez você vai criar o elemento surpresa para seus personagens, aquilo que o leitor percebe na história como sendo o momento de suspense. Essa parte da narrativa vai ser um desafio para você." O escriba olhou sorrindo para sua amiga, agradecendo pela fabulosa ideia. Continuaram a tomar o chá, enquanto o Escritor Astronauta deixava sua mente ser invadida por centenas de borboletas azuis voando num céu branco.

Escrito por Ulisses Góes



quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Um flash momentâneo cegou a visão do Escritor Astronauta, balançando a cabeça por causa da leve tontura que sentira. Devia ser a quinta vez que sua mente rodopiava em decorrência da sensação estranha de torpor provocado por aqueles flashes ocasionais. Apoiou-se no cabo da vassoura por alguns segundos, respirou fundo e procurou seguir com sua tarefa. Olhou ao redor, mirando toda a amplidão daquele hangar vazio e tentando imaginar há quanto tempo estaria ali varrendo o chão daquele lugar. Estava muito incomodado por não conseguir se lembrar como chegou ali e nem porque estava varrendo a poeira daquele imenso espaço aparentemente abandonado. Tinha uma lembrança meio distante a respeito de uma história que estava escrevendo atualmente sobre três jovens que encontram um objeto maligno e que estão correndo perigo por conta desta descoberta. Parou de varrer e novamente olhou calmamente o hangar ao seu redor. "Não é possível. Será que estou tendo uma crise criativa e estou sem ideias para continuar desenvolvendo a história?", indagou o Escritor para si mesmo. Era difícil obter respostas quando a mente parecia mergulhada numa piscina de amnésia flutuante, boiando em meio a memórias esquecidas e lembranças afundadas. "Eu tenho essa lembrança meio distante de estar escrevendo essa história, e de estar em uma parte da narrativa onde os personagens parecem estar em perigo... Acho até que me lembro quem estava perseguindo eles... Ou não", o Escritor esboçava uma expressão confusa no rosto, enquanto procurava organizar suas ideias a respeito do vácuo que se instalou em sua memória naquele momento. A impressão que ele tinha era como se todas as ideias tivessem desaparecido sem deixar pistas esclarecedoras. Fechava os olhos, e tudo o que conseguia visualizar era uma imensidão branca ao seu redor. Estava quase certo de que não escrevia nada há dias, ou semanas. Aquele pensamento súbito lhe causou calafrios de ansiedade, pois tratava-se de uma situação que poderia causar um atraso irreversível na conclusão de seu livro. O Escritor sabia que seu receio pelo pior tinha fundamento, pois já havia passado por períodos de crise criativa anteriormente, quase deixando de finalizar histórias por falta de ideias para concluir suas obras. "Isso não pode estar acontecendo de novo. Eu lembro que tinha ideias elaboradas, inclusive algumas delas rabiscadas em papéis, rascunhos breves de como seria desenvolvida toda a construção da narrativa. Creio ter deixado esse material sobre a mesa". Então uma nova crise de ansiedade percorreu seu corpo disfarçado como mais um calafrio inevitável ao se recordar do que aconteceu quando Salomé, a diarista que duas vezes por semana fazia uma faxina completa em seu apartamento, acabou limpando sua mesa e, por engano, jogou todos os seus rascunhos no lixo. Em parte, a culpa pelo ocorrido partiu de seu descuido em não explicar para Salomé que aqueles papéis em sua mesa constituiam material importante para seu trabalho como escritor, e que nada ali poderia ser jogado fora. Após o infeliz acidente, o Escritor procurou ser mais detalhista sobre as atividades da empregada baixinha e faladeira na limpeza do apartamento, orientando a diarista a respeito de suas tarefas domésticas. Ainda assim, foi uma experiência traumatizante para ele, pois alguns trechos vitais do livro que estava escrevendo na época acabaram no lixo junto com embalagens amassadas de café, potinhos de requeijão cremoso e restos de refeições, e reescrever tudo de novo exatamente como havia sido escrito da primeira vez foi praticamente impossível. De maneira alguma queria passar por aquilo novamente. Continuou varrendo, enquanto forçava sua mente a se lembrar de algo, e após alguns longos minutos que pareceram mais horas intermináveis, avistou uma placa informativa pregada em uma parede ao longe. Sem enxergar direito o que estava escrito nela, percorreu a enorme distância movido por uma curiosidade incômoda. Aproximou-se da placa prateada fixada na parede do Hangar e leu a informação em letras douradas: "BLOQUEIO CRIATIVO". Seu coração disparou movido por uma angústia silenciosa. Ao se deparar com aquele aviso inquietante, conseguiu resgatar uma recordação sobre aquele enorme espaço, e finalmente encontrou a explicação de que precisava para entender parte daquela situação. Aquele hangar vazio era a maneira que seu cérebro anunciava quando as ideias estranhamente desapareciam e seu processo de criação estagnava. Já esteve ali em outras ocasiões difíceis. Parou de varrer e olhou para o teto. Notou que havia algo de errado na sua presença naquela vasta estrutura feita de metal, silêncio e falta de ideias.
Olhou a viseira de seu capacete, procurando ativar alguma informação, mas não conseguiu obter qualquer sinal ou conexão. "Tenho a impressão de que aqui você não vai obter nenhuma informação que deseja dessa maneira", disse uma voz educada atrás do Escritor, que virou-se com ar de surpresa por se deparar com a presença inesperada. Deu uma boa olhada na figura pequena e despojada daquele senhor idoso com uma face de traços orientais marcada por um bigode e um cavanhaque brancos, e com uma careca rodeada com o restava de seus cabelos grisalhos. Vestia um quimono branco e preto no melhor estilo Pai Mei e seu olhar era tão sereno quanto suas palavras. "Não esperava você novamente aqui tão cedo. Imaginei que você demoraria a escrever uma nova história", disse o pequeno homem sem desviar seu olhar impassível. O Escritor olhou para os lados, intrigado com aquela aparição repentina. A entrada mais próxima que avistou foi uma porta que ficava cerca de 800 metros do outro lado do Hangar. "Eu conheço você?", indagou encarando o idoso baixinho parado à sua frente. "Como é de se esperar, o bloqueio impede você de reconhecer suas incapacidades anteriores e apaga de sua memória as visitas anteriores que você fez aqui", disse o pequeno homem, que não aguardou outros questionamentos do Escritor para continuar com suas explicações, "Sim, você me conhece e já tivemos este encontro outras vezes, sempre neste mesmo ambiente, uma criação de sua mente nos momento em que ela sofre um bloqueio criativo, uma vasta projeção gerada pela paralisia das ideias, ansiedade proporcionada pelo descontrole do texto criado, ou simplesmente por encarar uma página em branco e não saber o que escrever". "Então quer dizer que já nos vimos antes? Meio difícil de acreditar, principalmente porque não me lembro de você", disse o Escritor meio confuso, "Se esse aqui é meu bloqueio criativo, quando eu conseguirei sair daqui?". "Sua saída deste lugar vai depender apenas de sua capacidade de lembrar o motivo que o trouxe aqui", respondeu o pequeno senhor. "Afinal de contas, quem é você? Alguma espécie de projeção que minha mente criou para me fazer companhia enquanto fico varrendo esse lugar gigantesco?", questionou o Escritor um pouco nervoso, enquanto sacudia a vassoura diante do olhar irredutível do senhor de olhos puxados. "Sim, você está certo. Você me criou como o Guardião do Hangar. Estou aqui para confrontar suas dúvidas e lhe dar a oportunidade de encontrar sua saída daqui de forma espontânea. Venha, me acompanhe", a figura baixinha do senhor virou-se e seguiu caminhando em direção ao centro daquele enorme lugar vazio. O Escritor, logo atrás, formulava novas perguntas, "Espere, para onde estamos indo? E que história é essa de espontâneo? E por que eu criei um Guardião nanico e careca que me confunde mais do que me ajuda?", Prestes a formular mais questionamentos, o Escritor foi bruscamente parado por um gesto rápido e ríspido do Guardião, que levantou a mão na altura de sua cabeça. Silenciosamente, ele uniu as palmas das mãos junto ao peito e fechou o olhos. Em seguida, ensaiando movimentos de luta marcial semelhantes ao Kung Fu, golpeou com um dos pés o chão, provocando um estrondo impressionante que fez levantar um perfeito bloco de concreto. A imensa pedra polida pairou por microssegundos no ar antes de cair, tempo suficiente para o buraco surgido no chão desaparecer sem deixar vestígios. Depois que uma leve camada de poeira se dissipou no ar, o Escritor Astronauta percebeu que havia um arquivo incrustado no bloco. Sem muita cerimônia, o Guardião se aproximou, puxou a segunda gaveta, pegou uma pasta com papéis e começou a folhear os documentos em suas mãos. "Aqui estão todos os processos de seus bloqueios criativos já ocorridos. Não são muitos. Aqui estão informações de quando ocorreram, os motivos dos mesmos terem surgido e como você conseguiu quebrá-los. O último aconteceu por culpa de Salomé, a sua diarista", explicou, entregando os documentos para o Escritor. "Sim, eu me recordei disso agora mais cedo. Foi uma situação complicada, pois tive que me controlar para não xingar a coitada. O pior de tudo foi reescrever todos os trechos que eu havia rascunhado. De qualquer forma, eu aprendi com a desastrosa experiência, e passei a ser mais cuidadoso com meus papéis escritos", comentava o Escritor, andando calmamente de um lado para o outro, "Mas agora, pelo que me lembro, o bloqueio tem a ver com a história em si. Eu estava escrevendo, e então, num determinado ponto, a história fugiu ao meu controle. É isso. Sim! Eu me recordo agora, não o suficiente ainda, mas eu começo a me lembrar". A partir de então, tudo se tornou mais complicado para ser resgatado da memória do Escritor angustiado com a dificuldade do momento. Virou-se impaciente para o Guardião, que pegou pasta de suas mãos e a colocou de de volta no arquivo sem demonstrar qualquer sentimento de pena ou solidariedade com o sofrimento de seu criador. Um novo movimento, mais um golpe poderoso de seu pé, e ele fazia o chão se abrir perfeitamente para receber de volta o bloco de concreto com aquele arquivo precioso. "Você conseguiu recordar de maneira espontânea que seu bloqueio atual teve início porque você perdeu, em determinado momento de sua criação literária, o controle de sua história. Esse é o caminho", disse o Guardião, novamente encarando o Escritor com seu olhar impassível e calmo. "Sim, esse é o caminho. Mas tem algo errado que eu ainda não enxerguei", refletiu o criador de narrativas, "De fato, eu perdi o controle de minha história, mas é preciso haver um motivo para a perda do controle. Qual situação motivou, ou quem?...". Um flash de pensamento começou a pulsar tão rápido quanto um piscar de olhos em sua memória. No início, o pensamento formava a imagem de um rosto desfocado, até que gradativamente e cada vez mais veloz, a imagem pulsou em flashes em sua mente, até que fez surgir uma imagem translúcida bem ao seu lado, mostrando um rosto bem definido ladeado por uma sequência de informações esclarecendo quem era aquela pessoa. Mirou atentamente a imagem e soltou um grito, "Flávio! Sim, agora me lembro! É por causa dele que estou experimentando esse novo bloqueio criativo! Ele me lançou para cá!". Em uma fração de segundos, sua mente foi invadida por diversas lembranças numa velocidade alucinante. Sua história, o Livro da Morte, Hemilly, Henrique, Roney, o trecho em que ele narrava como Flávio descobriu que era personagem de um livro, o detector de textos incontroláveis oferecido pelo seu amigo Ramon, a estranha caneta encontrada, o texto resgatado. Entusiasmado, o Escritor podia sentir todas as suas memórias retornando intensamente. "Percebo que você recuperou toda sua memória, inclusive a memória dos fatos ocorridos após o resgate de seu texto feito pela caneta", observou o Guardião do Hangar. "Sim", respondeu o Escritor com um leve sorriso no rosto, "Eu me recordo de estar sentado no sofá em minha sala. Eu estava relendo o meu texto que a caneta havia recuperado, então senti uma dificuldade repentina em respirar semelhante a que senti quando Flávio surgiu da primeira vez na minha frente. Logo em seguida, fiquei tonto, e percebi uma névoa negra rodopiando nervosa ao meu redor. Procurei meu capacete, mas antes que eu pudesse colocá-lo, senti uma pancada forte em minha cabeça. Caí no chão meio desacordado, Flávio veio para cima de mim com uma seringa na mão. Senti uma picada fina em meu pescoço e desmaiei. E então acabei aqui na minha projeção criada pela minha mente, conversando com um Guardião baixinho parecido com Sr. Miyagi." Assim que terminou de libertar suas memórias mais recentes, o Escritor sentiu tremores no chão. Olhou para os lados e viu o imenso Hangar começar a ruir. Toda a estrutura de metal e concreto estava caindo por toda parte provocando um barulho quase ensurdecedor. "O que está acontecendo?", gritou assustado o Escritor. "O seu bloqueio criativo foi rompido. Você conseguiu quebrar as barreiras que o impediam de seguir adiante. Não vai demorar muito para tudo aqui desmoronar completamente", explicou o Guardião, "É aqui que mais uma vez nos separamos. Boa sorte. Que você consiga terminar a sua história", disse, virando e sumindo calmamente no meio dos escombros e entulhos que se formavam em toda a área do Hangar. Sem saber para onde correr, o Escritor tentou se proteger dos pedaços de metal que caíam. Quando uma viga enorme de aço estava prestes a lhe atingir em cheio, uma descarga de adrenalina invadiu seu corpo e um flash tomou conta de sua visão. Acordou sobressaltado, com o coração acelerado, o rosto suado, no chão da sala de seu apartamento. Ainda um pouco ofegante, olhou para a mesinha de centro. A caneta e os papéis com seu texto resgatado ainda estavam ali.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Escritor estava confuso com a descoberta. Não tinha certeza se o que tinha em mãos era exatamente aquilo que deveria ter encontrado. Passou muito tempo caminhando nas areias daquela praia deserta, e após uma busca cansativa que parecia nunca terminar, tudo o que o detector de textos incontroláveis encontrou foi uma pequena caixa retangular de metal enfeitada com minúsculas engrenagens, um relógio que mal cabia na ponta do dedo e uma lâmpada diminuta, sempre acesa. Agora estava sentado no sofá da sala, segurando aquele pequeno objeto, tentando decifrar como aquilo poderia lhe ajudar a encontrar o trecho em que a história que estava escrevendo fugiu ao seu controle. "Isso parece uma sucata enferrujada", disse, contrariado, examinando de perto a pequena caixa de todos os ângulos possíveis. Pensou em retornar pela porta para iniciar uma nova busca, mas a mesma já havia desaparecido logo após ele retornar para a sala de seu apartamento. E assim como as outras, sequer viu o momento em que ela sumiu, uma situação que deixava o Escritor visivelmente irritado. "Malditas portas...", resmungou, enquanto movimentava, meio nervoso, a caixinha em suas mãos. Balançando ela levemente, percebeu que havia algo dentro. Mesmo considerando a possibilidade de sua busca ter sido um fracasso por encontrar algo que em nada se parecia com textos perdidos, o Escritor puxou algumas imagens translúcidas e iniciou uma ampla pesquisa em sites de busca, banco de dados e sistemas de informações com o objetivo de encontrar algo que pudesse revelar que objeto era aquele que estava agora em seu poder. Entretanto, todas as pesquisas foram em vão. Dominado pela curiosidade, abriu a pequena caixa com extremo cuidado e imediatamente a lâmpada diminuta apagou-se. Dentro havia um objeto estranho, uma haste de metal com um quase minúsculo relógio em uma das extremidades, junto com um filamento de cobre espirilizado que se prolongava contornando toda a extensão da haste. O Escritor olhou confuso, sem saber com certeza o que era aquilo. Olhou mais atentamente e chegou a uma conclusão que poderia ser a mais plausível para definir aquele objeto em sua mão. "Eu não estou muito certo do que encontrei, mas acredito que isto seja uma caneta", afirmou, segurando com atenção o bizarro instrumento. Silencioso enquanto pensava, o Escritor procurou entender sua descoberta e imaginou como ela traria de volta os textos descontrolados de sua história. "Se isso for realmente uma caneta, como eu suponho que seja, então provavelmente será através dela que encontrarei meus textos. Não deixa de ser uma possibilidade. Afinal, antes do surgimento de toda essa tecnologia, os escritores criavam suas narrativas e o poetas escreviam seus versos utilizando-se de pena e tinta, ou de uma simples caneta". Eufórico pela hipótese formulada, correu para sua mesa de trabalho, abrindo gavetas em busca de folhas de papel em branco onde pudesse utilizar a suposta caneta. Encontrou um maço de papéis em branco e jogou tudo na mesinha de centro da sala. Concentrou-se, segurando o pequeno instrumento de escrever, como que aguardando que aquele ritual trouxesse de volta as lembranças dos trechos perdidos, fazendo-o transcrever tudo novamente para as folhas. Mas os segundos se passaram, transformando-se em minutos suspensos, e nada aconteceu. Começou a ficar ansioso, quase nervoso. Nada podia ser mais desanimador do que uma tentativa frustrada de uma ideia que parecia fascinante. Largou a caneta e construiu segundos silenciosos, observando aquele objeto inerte em cima do papel enquanto arquitetava dezenas de pensamentos a respeito do que poderia estar errado naquela situação toda. Planejou levantar-se do sofá, reorganizar suas dúvidas para entender a sequência de ações ocorridas nos últimos minutos após a partida de seu amigo Andarilho Estelar, mas um movimento imperceptível chamou sua atenção. Podia ser apenas sua imaginação brincando com seus sentidos, mas não era. A suposta caneta promoveu um movimento sutil, tímido ainda, diante de seus olhos espantados, começando a se mexer sozinha, cada vez mais nervosa, até que se levantou e ficou em pé sobre a folha, flutuando milímetros acima de sua superfície branca, inerte. Não demorou muito, e a caneta, para assombro completo do Escritor Astronauta, começou freneticamente a escrever linhas e mais linhas de um texto que se configurou familiar para ele. Aproximou-se mais do papel e começou a ler atentamente todo o trecho que estava sendo escrito pela ponta ágil da caneta. Logo acima, uma tela translúcida posicionou-se e captou a liberação do texto antes perdido de seu livro, fazendo a transcrição em tempo real do que estava sendo reescrito.
"Enquanto dirigia pela estrada, Flávio relembrava que no início não conseguia controlar seus pensamentos confusos e dispersos. A princípio, aquela voz narrativa constante que ouvia em determinados momentos ecoando em seus ouvidos o deixara transtornado, a ponto de imaginar se tratar de algum tipo de esquizofrenia que poderia estar sofrendo, por conta do livro satânico que guardava há tanto tempo com ele. Não queria acreditar que realmente estivesse ficando maluco por possuir algo tão sombrio e maligno, e tentou descartar tal hipótese tão perturbadora. Entretanto, depois que perdeu o livro, a voz em sua cabeça tornou-se mais presente, mais constante, narrando cada atitude sua, e descortinando cada ideia que pensava em fazer. Era como se ela soubesse sempre de tudo o que faria, revelando tudo o que tinha programado fazer no tempo futuro. Evitando a iminente carga de loucura que insistia em querer se instalar em sua mente, há alguns dias Flávio decidiu concentrar-se na sequência narrativa daquela voz em sua mente. E em um desses momentos de concentração intensa, conseguiu criar um elo conectivo extremo com a voz, e descobriu que ela narrava não apenas suas ações, seus pensamentos, sua rotina diária, mas as ações de outras pessoas que ele sequer conhecia. Nomes começaram a surgir entre as narrações, descrição de situações acontecendo em outras partes da cidade. E foi assim que Flávio ficou sabendo da existência de Hemilly, Henrique e Roney, de como ele perdeu seu livro satânico e de quem o encontrou. Era como se realmente alguém estivesse escrevendo a história de sua vida enquanto ela acontecia diante de seus olhos. Passou a manter o foco na voz onisciente, e cada vez mais concentrado, ficava sabendo de mais fatos e informações importantes, até que um dia teve uma visão de alguém sentado diante de um monitor, digitando incessante em um teclado estranho. Conseguiu visualizar o rosto da pessoa e tudo o que ela escrevia. Abriu os olhos instantaneamente e sussurrou uma frase satisfeito, como se tivesse acabado de resolver uma equação complexa, 'Um escritor escrevendo a história de nossas vidas'.
Depois que encaixou as peças do quebra-cabeça e entendeu aquela visão como uma explicação bastante plausível para o que estava acontecendo, Flávio admitiu que aquilo não poderia ser uma loucura criada por uma mente esquizofrênica, principalmente porque havia encontrado o Livro da Morte muito antes daquela voz começar a soar em seus ouvidos, e agora não encarava nada daquilo como anormalidades ou distorções provocadas por algum tipo de distúrbio psicológico. Saiu da rodovia, invadiu uma estrada de terra, seguindo até perto de um penhasco. Estacionou seu Plymouth Sundance vermelho não muito longe da beira do precipício. Saiu do carro e ficou admirando dali do alto aquela imensa região desértica cheia de platôs. Estava ciente de que, desde que ultrapassou os limites da cidade e dirigiu até aquele ponto, o descoberto escritor estava narrando tudo o que ele estava fazendo e tudo o que estava pensando até aquele exato instante. A voz ecoava naquele momento em seus ouvidos. Agora precisava ser ágil o quanto antes e encontrar uma maneira de apagar ou esconder todo aquele trecho da história que o escritor desenvolvia. Só assim teria uma vantagem que favoreceria um ataque violento e inesperado contra aquele que ele considerava como o principal culpado por ter perdido o seu Livro da Morte. Olhou para o deserto se espalhando pelo horizonte e pensou que aquele local seria o mais apropriado para concluir seu plano. Traria o escritor até ali e o forçaria a mudar todo o rumo da história. Seria a conclusão perfeita para reaver seu Livro da Morte. Flávio controlou sua raiva fechando o punho com um gesto firme. Entrou no carro, faz uma manobra arrojada e seguiu para a rodovia, tomando o caminho de volta para a cidade. Precisava agir mais rápido do que a construção de pensamentos do escritor maldito".

A caneta subitamente parou de escrever, rodopiou para o alto e em seguida desceu flutuando lentamente sobre as folhas escritas de papel. O Escritor Astronauta estava completamente surpreso com aquele trecho redescoberto da sua história. Sabia que tinha escrito aquelas linhas, mas com o sequestro do texto pelo personagem, concluiu para si mesmo que a eliminação daquela parte deve ter provocado alguma espécie de amnésia literária, pois não se lembrava de ter escrito aquilo até o momento em que a caneta revelou tudo para ele novamente. Finalmente sabia o ponto exato onde havia perdido o controle de sua história e de seu personagem Flávio.

Escrito por Ulisses Góes

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O Escritor estava se levantando, disposto a subir as escadas em direção ao seu apartamento para tomar uma boa xicara de café como planejado naquele momento quando a viseira de seu capacete foi inundada por uma enxurrada de informações descontroladas. Dezenas de imagens translúcidas acompanhadas de breves chiados e ruídos intercalados deixaram o Escritor atordoado. "Não é possível. Outra interferência? Ou estou sonhando novamente?", esbravejou, lembrando do pesadelo maluco do supermercado que tivera há alguns dias. Balançou o capacete, tentando se livrar daquela interferência, enquanto por comando de voz buscava fechar todas as janelas de informações que surgiam, mas tudo foi em vão. Foi quando nesse momento os ruídos cessaram e começou a escutar uma música ecoando em seus ouvidos. Imaginou que algum dia teria que descobrir a origem de tais intervenções sonoras que apareciam de maneira tão inesperada. Ouviu aquela canção tão familiar do R.E.M. e percebeu que a música parecia controlar todo o fluxo de informações que vinha num emaranhado de notícias diárias, textos científicos, verbetes de dicionários, tutoriais extensos, imagens de programas do canal Discovery, tudo aparecendo e desaparecendo incessantemente em sua viseira. A melodia comandava a onda de informações de forma gradativa até que as imagens começaram a desaparecer num refluxo rápido. "Hey now, take your pills and / Hey now, make your breakfast / Hey now, comb your hair and off to work / Crash land, no illusions, no collision, no intrusion / My imagination runs away". Quando finalmente a viseira de seu capacete estava liberada de todas aquelas imagens, o Escritor olhou para os dois lados da rua e se deu conta de que o movimento das pessoas e carros havia desaparecido. Tudo estava incrivelmente calmo como numa manhã ensolarada de domingo. Era possível ouvir o vento sacudir as folhagens das árvores próximas e criar pequenos redemoinhos de poeira luminosa e papéis pela calçada. O Escritor estava quase entrando em seu prédio quando ali perto o alarme de um carro disparou sem motivo aparente, chamando sua atenção. Foi quando ele viu uma pessoa conhecida andando em sua direção. O conhecido amigo, com um leve sorriso estampado no rosto, caminhava calmamente no meio de um redemoinho de imagens translúcidas, as mesmas que alguns segundos antes tinham invadido a viseira de seu capacete. Todas elas giravam velozmente até a altura um pouco acima da cintura do amistoso amigo, reconhecido logo em seguida. "Ramon? Meu amigo, Você por aqui? Espere um pouco... Você não estava viajando?", interrogou o Escritor. "E estava, lógico. Sempre estou. Berlim é uma cidade fantástica, multifacetada, empolgante, com seus palácios, parques em contraste com uma arquitetura arrojada, moderna, contemporânea", respondeu animado Ramon, o Andarilho Estelar, com uma voz mansa porém constante, sem interrupções, todas as suas frases fluindo num trânsito de palavras descongestionadas. Aproximou-se sem pressa, uma barba cheia quase escondendo suas bochechas, as mãos nos bolsos da calça jeans surrada, uma velha jaqueta cáqui por cima de uma camisa de flanela xadrez vermelha, um gorro cor de doce de leite por cima dos cabelos meio compridos. O redemoinho de imagens desapareceu sutilmente quando Ramon abraçou o amigo que não via há tempos. "Quando dispor de um tempo, aproveite para visitar a metrópole européia, pois tenho certeza absoluta de que sua estadia por lá será revigorante e inspiradora. A culinária é única, recomendação constante de meu amigo andarilho Anthony Bourdain", explicou Ramon, com uma dialética hipnótica comprovada outras vezes pelo Escritor, sempre admirado com a capacidade impressionante que o amigo tinha de quase nunca repetir as mesmas palavras em uma conversa. "Que bom rever você, Ramon. Está de passagem pela cidade?", "Sim, companheiro escriba. Redefini minha rota de viagem, reprogramei escalas e conexões para ter o prazer deste encontro com sua pessoa no centro urbano onde vive. Ou considerou a possibilidade de que eu perderia essa oportunidade maravilhosa e rara? Nos dias atuais, as informações navegam na velocidade de alguém pensando em piscar os olhos. E estou ciente de sua nova obra que está escrevendo. Por isso aqui estou". "Que bom saber que meus amigos estão atentos aos meus trabalhos em andamento. Aproveitando, você não quer subir, tomar um café e me contar as novidades?", perguntou o Escritor. "Mas é claro que sim! Será uma honra imensurável. Vamos, me acompanhe", disse o Andarilho Estelar, apontando para uma porta antiga num muro de um terreno baldio logo ao lado do seu prédio. De início, o Escritor ficou meio confuso, pois nunca tinha visto aquela porta ali antes. Poderia jurar que ela não estava ali antes de Ramon aparecer. O Andarilho Estelar abriu a porta e com um gesto educado e amistoso chamou o amigo para entrar. O Escritor pensou em perguntar o que iriam fazer em um terreno baldio, mas assim que atravessou a porta, desistiu completamente de fazer tal questionamento. Olhou ao redor e reconheceu o ambiente tão rapidamente quanto começou a sorrir. Estavam na sala de estar de seu apartamento. Ramon entrou logo atrás dele e fechou cuidadosamente a porta.
O Andarilho Estelar caminhou despretensioso até o sofá, afastando cuidadosamente algumas imagens translúcidas que flutuavam pelo caminho enquanto outras eram atraídas pela sua presença e começavam a rodopiar lentamente ao seu redor. Sentou-se mansamente, enquanto o Escritor, ainda sorrindo e com receio em perguntar desde quando o amigo começou a abrir Portas Inesperadas, tirou o capacete e foi providenciar xícaras de café. "Meu querido, seu pequeno castelo permanece aconchegante. Quando o visito, sinto-me em um outro mundo, longe da agitação, das multidões. Neste lugar foi construído um recanto de serenidade no qual o tempo desacelera gradativamente", explicava Ramon, sempre fluente nas palavras. "Um ambiente assim é indispensável para mim. Preciso de toda concentração possível para escrever. Qualquer barulho externo pode me atrapalhar ou me distrair, e posso perder todo a minha linha de raciocínio com a história. Eu consigo me concentrar somente com meus próprios barulhos", disse o Escritor, enquanto oferecia uma das xícaras de café para Ramon. "Agradecido, meu caro. Uma boa bebida quente agora é reconfortante e se encaixa perfeitamente no espaço criado", o Andarilho tomou um gole, fez uma pausa breve e continuou, "Você sabia que os dias estão ficando mais curtos? Tudo por causa daquele terremoto no Japão". A informação dita por Ramon fez o Escritor erguer as sobrancelhas, "Como assim mais curtos?". Ramon levantou-se e foi até a janela, como se quisesse observar de alguma maneira o tempo cronológico e invisível que envolvia a Humanidade. "Segundo a NASA, o tremor nipônico de magnitude 9 diminuiu a duração dos ciclos diários terrestres e deslocou seu eixo. Um cientista aplicou um modelo complexo elaborando um cálculo preliminar para mostrar como o 5º maior abalo sísmico da História afetou o planeta. Os resultados indicam alteração na distribuição da massa da Terra devido a catástrofe ocorrida, fazendo essa imensa esfera solta no espaço girar um pouco mais rápido, encurtando o comprimento do dia por cerca de 1,8 microssegundos", Ramon fez uma pausa na explicação para beber outro gole de café e olhou para o amigo sentado no sofá. "Microssegundos? Então é completo exagero considerar que as pessoas perceberão essa alteração", disse o Escritor. "Imperceptível para a raça humana, sem dúvida", ponderou Ramon, alisando sua barba meio ruiva, "Entretanto, convêm considerar que o homem desenvolve suas próprias maneiras de acelerar o tecido temporal de sua época atual, concorda? E são práticas mais eficientes e perturbadoras do que as provocadas pela Natureza, admita. E elas tem nomes: rotina corrida, cotidiano desenfreado. Milhões, bilhões sem saber o que estão perseguindo diariamente", completou Ramon. O Escritor levantou-se e foi em direção à janela, procurando seguir a lógica de raciocínio do Andarilho Estelar, "Acredito que as pessoas estejam perseguindo seus objetivos, suas metas, correndo atrás daquilo em que acreditam". "A maioria corre atrás de objetivos alheios, metas temporárias. Raros são aqueles que seguem seus caminhos mais autênticos, abraçando seus sonhos desafiadores. Exemplo maior está diante de mim agora", Ramon sorriu e curvou-se fazendo um leve gesto de deferência ao amigo. "Quem? Eu? Não, Ramon", retrucou o Escritor sem jeito, "Eu sou igual a todo mundo. Longe de mim ser essa pessoa rara que você descreveu". O Andarilho permaneceu sorrindo, "Incrível sua modéstia. Porém, não admitir uma verdade não significa que ela deixa de existir. Parir mundos e personagens é um dom, admita. Em alguma ocasião, já foi questionado sobre o que o motiva a continuar na carreira literária? O que o impulsiona a seguir adiante?". Tais indagações do Andarilho Estelar deixaram o amigo pensativo, o que o fez lembrar que durante toda aquela manhã tentou em vão pesquisar os possíveis trechos de seu desenvolvimento narrativo onde pudesse ter perdido o controle da história. "O que me motiva a continuar escrevendo é o simples fato de que acredito em tudo aquilo que eu faço, e acredito que é o que eu tenho que fazer sempre... E por isso estou aqui, a manhã toda tentando descobrir em que ponto exatamente minha história ganhou autonomia própria para seguir criando situações as quais não me recordo ter imaginado", explicou o Escritor. Ramon encarou o amigo por alguns segundos, procurando a maneira exata de dizer que já sabia previamente daquela situação complicada, e não demorou a relatar a verdadeira intenção de sua visita. "Compreendo sua problemática e haja visto seu insucesso na pesquisa citada, minha visita aqui é tanto saudosa quanto solidária. Trago ajuda para sua investigação", ao dizer isso, o Andarilho Estelar caminhou até uma outra Porta Inesperada que surgiu ao lado da estante de livros momentos antes enquanto conversavam. O Escritor Astronauta espantou-se com mais aquela porta que tinha certeza não existia há segundos atrás, e pensou na possibilidade do Andarilho ter desenvolvido aquela habilidade em algumas de suas viagens à Ásia. Ramon abriu a porta e acendeu uma pequena lâmpada pendurada no teto, iluminando um pequeno espaço que aparentava ser um armário de bugigangas tecnológicas, algumas familiares como monitores antigos de computadores, caixas cheias de iPods, tablets, e outras estranhas e aparentemente inexplicáveis com seus cabos, transistores e circuitos elétricos, verdadeiros aparelhos que pareciam criados em um universo similar a este conhecido pela humanidade, onde a tecnologia moderna surgiu precoce e extraordinária décadas antes através da ciência disponível na época. O Escritor aproximou-se cauteloso e viu o Andarilho vasculhando o local procurando algo que não demorou muito para encontrar. "Busca bem sucedida", disse, saindo do armário trazendo em uma das mãos o objeto achado. Ramon não demorou para explicar o que seria aquele aparelho. "Aparentemente pode ser confundido com um detector de metais comum. Todavia, este artefato será de uma utilidade primordial para suas pesquisas atuais, já que o mesmo procura e denuncia a existência de trechos literários fora de controle". Após a explicação inicial, o Andarilho entregou o objeto nas mãos do Escritor, intrigado com o que acabara de ouvir, "Você está me dizendo que isso aqui é, basicamente, um detector de textos incontroláveis?". "Brilhante colocação! Exatamente! Prático, eficiente, funcionamento simples. Muito útil também para revelar textos esquecidos, contos abandonados e poesias inacabadas", respondeu Ramon com entusiasmo, e prosseguiu, "Vê aquela porta ao lado de sua mesa de trabalho? Atravesse ela e encontrará o ponto falho e descontrolado de sua narrativa". "Outra porta? Como essas malditas aparecem de repente?", pensou indignado o Escritor, já impaciente com tantas passagens surgindo sem que ele sequer pudesse perceber. Quando decidiu enfim perguntar ao Andarilho Estelar como as portas surgiam, Ramon o interrompeu momentaneamente. Um novo redemoinho de imagens translúcidas surgiu rapidamente girando ao seu redor. Estendeu a mão e pegou uma das imagens contendo uma mensagem de texto enviada para ele naquele exato momento. "Destemido escritor, sinto muito em dar essa notícia, mas não poderei acompanhá-lo em sua varredura importante. Fui alertado de um compromisso programado onde minha presença é indispensável". "Mas e quanto à porta? Como retornarei quando terminar minha busca?", perguntou apreensivo o Escritor, sem perceber que atrás de si outra Porta Inesperada surgiu no mesmo local onde eles entraram da primeira vez para chegar ao seu apartamento. Ramon olhou por cima do ombro do amigo e observou a urgência do momento. Sabia que precisava ir o quanto antes, e por isso suas explicações foram breves e precisas, "Vá despreocupado, a passagem aguardará paciente pelo seu êxito. Saiba que foi formidável estar contigo novamente. Espero vê-lo em breve". O Andarilho Estelar abraçou o amigo, apertou sua mão calorosamente e partiu atravessando a porta que o aguardava. O Escritor olhou silencioso para o detector em sua mão por um breve instante, tempo suficiente para ele não conseguir ver a passagem por onde Ramon entrou desaparecer, situação que começava a deixá-lo chateado. "Maldição. Como elas desaparecem sem que eu consigar ver?", pensou, irritado. Colocou seu capacete e, equipado com o detector, dirigiu-se para a porta ao lado de sua mesa onde estava seu computador e vários papéis espalhados com anotações suas. Girou a maçaneta e em questão de segundos estava pisando na areia fofa de uma praia, iniciando sua busca pelo trecho incontrolável de sua narrativa. Procurava pelo ponto exato onde havia perdido o domínio de sua história.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman

sábado, 25 de agosto de 2012

O Escritor Astronauta saiu daquele apartamento vazio com os pensamentos anestesiados. Desceu as escadas ainda sem entender o que havia acontecido minutos antes com ele naquele lugar. Pensava no guarda-roupa, no leão, na música que tocava sem parar, nas pessoas com as quais ele possivelmente havia conversado e nos livros com personagens de sua história na capa. Foram momentos tão reais que sua mente sentia uma dificuldade imensa em considerar que tudo aquilo foi um sonho maluco. Continuou descendo os degraus, percebendo agora o silêncio que reinava pelo prédio. Não havia mais qualquer música ecoando pelo ambiente. Chegou no corredor que levava ao seu apartamento, e viu as pedras lunares ainda pelo chão, exatamente no mesmo lugar em que estavam quando passou por ali alguns minutos atrás. "Parece que as pedras que Drummond anda deixando por aí definitivamente não fazem parte de meus estranhos devaneios", pensou o Escritor. Caminhou em direção à escotilha de seu apartamento, e quando estava tirando as chaves do bolso de seu traje, notou um pequeno bilhete grudado bem na entrada. "Estive aqui e não encontrei você. Fiz uma descoberta fantástica e preciso que você veja. Assim que puder, me encontre no estacionamento do Shopping ainda hoje. Seu amigo Dr. Brown", dizia a mensagem escrita em um papel tirado daqueles pequenos bloquinhos de lembretes. De início, o Escritor pensou em ignorar aquele recado, pois estava muito ocupado com o seu livro e tinha reservado aquela manhã justamente para pesquisar a respeito do momento exato em que sua história tomou um rumo diferente de tudo o que ele havia imaginado até então. Mas parou um instante, pensativo, ainda com as chaves na mão, e lembrou-se que, mesmo com aquele olhar meio espantado e aqueles levemente desarrumados cabelos brancos precoces para os 34 anos que tinha, Dr. Brown sempre foi um de seus amigos, assim como Sérgio e Caroline, que constantemente inspiravam grandes ideias que eram aproveitadas em seus livros. A mais recente intervenção sugerida por Dr. Brown foi a de trabalhar com a temática de viagens no tempo, sugestão essa que o Escritor achou interessante e incluiu posteriormente no seu trabalho atual, com a personagem Hemilly viajando no tempo utilizando o Destemporizador. Ainda assim, achava estranhas as conversas insistentes do amigo a respeito de deslocamentos temporais onde ele citava constantemente Einstein e sua famosa Teoria da Relatividade. O Escritor guardou as chaves e o bilhete em seu bolso e desceu as escadas, mas foi parado bem no meio dos degraus por um novo bilhete pregado na parede. "Não entre em pânico. Você vai voltar um pouco no tempo. Acredite", era o que estava escrito no papel. "Engraçado. Esse bilhete não parece ser do Dr. Brown. Quem escreveu este tem uma letra muito parecida com a minha", disse o Escritor para si mesmo, olhando desconfiado para aquela caligrafia semelhanta à sua. Em sua viseira apareceu imagens translúcidas de mensagens suas escritas à mão com caneta esferográfica preta, algumas em folhas de caderno, a maioria em folhas de ofício. Fez uma mapeamento comparativo das letras e constatou que aquele bilhete foi escrito por alguém com uma letra idêntica à sua. Guardou esse novo bilhete em seu bolso quando ouviu um barulho forte no andar de baixo, como se alguém tivesse caído das escadas. Continuou descendo, dessa vez com passos mais rápidos, pulando alguns degraus, chegando ao andar térreo com rapidez. Mas não viu ninguém caído, apenas encontrou a porta da frente do prédio aberta, e imaginou que aquilo tivesse sido ação desleixada de alguns dos moradores que não se preocupam com a segurança do local ondem residem. Saiu olhando para os dois lados da rua, como que procurando por alguém conhecido, algum vizinho, mas só visualizou pedestres estranhos. Olhou para o céu, e ficou aliviado ao perceber que não caia mais aquela chuva fina e que o tempo estava melhorando. O Shopping não ficava muito distante de sua casa, então não demoraria muito em chegar ao destino combinado pelo seu amigo Brown. Fez uma rápida estimativa e os números nas imagens em sua viseira mostravam que estaria no local de encontro em no máximo 20 minutos, indo pelo caminho mais curto possível.
Assim que chegou, checou a pequena imagem translúcida de um relógio digital que aparecia na viseira de seu capacete. Como realmente previu, chegou no tempo estipulado ao estacionamento do Shopping, e somente quando começou a procurar pelo Dr.Brown, o Escritor se deu conta da imensidão daquele lugar lotado de carros estacionados. Observando todas as vagas ocupadas, não fazia ideia de onde encontraria seu amigo. Andou sem rumo durante alguns minutos por entre os automóveis. Não seria muito difícil encontrá-lo, já que deduzia que um estacionamento sempre teria mais carros do que pessoas. "Ninguém vem a um shopping para ficar perambulando pelo estacionamento", pensou enquanto olhava para todos os lados, na esperança de avistar Dr. Brown. Mas ao passar próximo de uma Hilux preta parada ao lado de um Sandero vermelho, escutou um barulho sinistro às suas costas, sons finos e estridentes, porém não muito altos. Olhou para trás um pouco assustado, e considerou a possibilidade de algum motorista ter atropelado um animal pequeno, mas descartou logo a hipótese pois concluiu que isso seria improvável ocorrer ali, já que estava no meio de um centro urbano. Os estranhos guinchos ecoaram novamente, e dessa vez o Escritor viu pequenos sopros de fogo surgir atrás de um carro, criando bolas incandescentes que não demoravam a desaparecer no ar. Caminhou lentamente na direção de onde haviam surgido as pequenas labaredas, sentindo o coração acelerado, experimentando uma mistura de medo e curiosidade em seu íntimo, sem fazer ideia do que encontraria à sua frente. Aproximou-se silencioso e então viu, paralisado por um pavor contido, uma garota aparentando não mais que 14 anos saindo por entre os carros, seguida de perto por dois pequenos dragões voadores, descrevendo voos rasantes e discretos pelo asfalto do estacionamento. Ainda sem notar a presença do Escritor assustado com a cena, a jovem, com seus longos cabelos loiros presos atrás por diversas tranças lindamente entrelaçadas e vestida tal qual uma nômade de tribos de desertos distantes, esgueirava-se rápida juntamente com seus dois seres reptilianos alados cuspidores de fogo. Parecia perdida, como se estivesse desesperada procurando uma saída daquele lugar completamente estranho para ela. Ainda apavorado, o Escritor presenciou aquela situação como uma vaga sensação familiar percorrendo sua mente, como se já tivesse visto aquela garota e seus dragões em algum outro lugar, um notíciario ou um livro conhecido. Um dejá vù atravessou seu corpo, provocando um calafrio em sua espinha. Sem fazer barulho, seguiu a jovem de uma distância segura. Olhou por baixo de uma Pajero branca, e encontrou a menina agachada entre dois carros, com os pequenos dragões escondidos embaixo de um dos veículos. Nesse momento, o Escritor Astronauta sentiu uma mão tocando seu ombro com firmeza, e um novo susto o fez encolher-se todo contra o pneu da Pajero onde estava apoiado. Felizmente, era Dr. Brown vestido como um arqueólogo aventureiro, com seus olhos meio espantados e seus cabelos brancos sempre desarrumados, ainda que estivesse usando um chapéu estilo Indiana Jones. "Então você está aqui! E pelo que vejo, parece que já encontrou minha descoberta fantástica, hein?", disse Dr. Brown num sussurro entusiasmado. "Doutor! Você me assustou!", disse o Escritor, sentindo o coração mais acelerado ainda. Meteu a mão em seu bolso, pegou os bilhetes e os entregou ao amigo, "Eu recebi seus recados". "Recados? Ah, sim, eu deixei um bilhete para você quando fui em sua casa. Esse outro recado não é meu, eu não escrevo tão horrível assim", disse Dr. Brown, enquanto amassava os dois pedaços de papel e os jogava longe. "Mas Doutor, eu encontrei esses dois...", o Escritor tentou explicar sobre os bilhetes, mas foi interrompido pelo amigo, visivelmente animado, "Incrível, não é? Eu a encontrei faz um semana em um outro estacionamento. Tentei fazer contato, mas ela não entendeu minha aproximação, se assustou e desapareceu com seus dragões. A princípio, eu pensei que poderia ser maluquice minha, mas então hoje encontrei ela aqui no estacionamento desse Shopping, e só então decidi procurar você", explicou Brown, quase sem folêgo. "Mas eu não entendo. De onde ela veio? E aqueles bichos seguindo ela? São... dragões?", indagou o Escritor, confuso. "Eu acredito que ela tenha encontrado, acidentalmente, alguma fissura no tecido espaço-temporal e acabou passando através dele para o nosso mundo", o Dr. Brown ajeitou seu chapéu, ajoelhou-se e observou a garota e seus dragões por baixo do veículo, como se estivesse analisando seu comportamento e suas expressões corporais. Então prosseguiu com suas mirabolantes explicações, "Quando a vi pela primeira vez, ela demonstrava estar confusa e amedrontada, e falava uma língua estranha. Quando me aproximei, os pequenos dragões que a acompanhavam reagiram cuspindo fogo contra mim". "Como se estivessem protegendo a menina?", perguntou o Escritor. "Exatamente! Agora ela deve estar procurando novamente uma outra abertura espaço-temporal para voltar para o seu mundo". A cada nova explicação do amigo, o Escritor estampava uma expressão diferente de espanto em seu rosto. E quando se preparava para fazer uma nova pergunta, pequenos redemoinhos de ventos começaram a se formar próximos de onde estavam escondidos. O Escritor olhou para o Dr. Brown, que segurava o seu chapéu na cabeça para que não fosse levado pelo vento enquanto admirava toda aquela situação com um sorriso de satisfação em seu rosto. "Isso é fantástico! Acredito que estamos a ponto de presenciar o rompimento do tecido espaço-temporal aqui, neste estacionamento!", disse o Dr, eufórico. "Você está dizendo que algum tipo de portal vai se abrir no meio do estacionamento do shooping?", perguntou o Escritor. "Sim! Exatamente! Esses portais devem surgir ocasionalmente e permanecem abertos por questões de segundos". "Isso é loucura", disse o Escritor, vendo imagens translúcidas em sua viseira com informações sobre velocidade do vento e alterações nas frequências das ondas de som ocorrendo em uma pequena área do estacionamento. Então eles escutaram um zumbido estranho seguido de um rápido clarão e de um barulho implosivo. De onde estavam, presenciaram a abertura de um pequeno portal dimensional entre dois carros estacionados ali próximos, um Corsa Sedan preto e um CrossFox cinza. Não demorou muito e viram a garota de tranças passar correndo com seus pequenos dragões em direção à fissura aberta. "Vamos! Não podemos perder essa oportunidade!", disse Dr. Brown cheio de entusiasmo, partindo em seguida atrás da menina. "Espere! O que você pretende fazer?", indagou o Escritor, mas sem obter qualquer resposta do amigo, que no meio do caminho deixou cair uma caneta esferográfica e um pequeno bloco de anotações. "Doutor!... Espere!... Doutor!", gritava o Escritor em vão. Não podia deixar o amigo cometer qualquer tipo de loucura que colocasse sua vida em perigo, e saiu atrás dele, apanhando a caneta e o bloquinho de anotações largados na aslfato e guardando no bolso de seu traje. A garota nômade atravessou o portal com os dragões cuspidores de fogo, e em seguida foi a vez de Dr. Brown passar pela fissura. O Escritor sabia do perigo que envolvia aquela situação toda, mas não pensou duas vezes em acompanhar o amigo maluco. Passou pela fissura e encontrou-se no meio de um deserto imenso cheio de platôs sob um sol escaldante. A garota corria ao longe junto com seus dragões, e atrás dela a figura espontânea, exploratória e destemida do Dr. Brown, seguindo aqueles personagens de um outro universo. Gritou o nome do amigo, mas ele parecia completamente indiferente aos seus chamados. Quando estava prestes a continuar seguindo Dr. Brown, sentiu uma força estranha atrás de si segurando seu corpo e o impedindo de movimentar-se. Era aquela fissura criando uma poderosa força gravitacional ao redor dela e atraindo o Escritor de volta para a abertura. Rapidamente ele foi sugado de volta pelo portal, sendo jogado a alguns metros contra o chão do estacionamento. A abertura espaço-temporal começou a se consumir, como se estivesse engolindo a si mesma para enfim desaparecer como um ponto luminoso numa implosão silenciosa. Aturdido, o Escritor Astronauta permaneceu alguns segundos no chão, até se levantar assustado pelo som da buzina de um carro que quase o atropela naquele momento. Ficou parado alguns instantes no meio daquele imenso estacionamento do shopping, tentando entender o que havia se passado minutos antes. Olhou para todos os lados, na esperança de ver Dr. Brown por ali, mas sabia que seria uma busca em vão.
Retornou para casa, dessa vez sem se importar muito em fazer o caminho mais curto, optando por um novo trajeto, enquanto pensava no que poderia acontecer com Dr. Brown perdido por terras estranhas em um universo desconhecido. Quando estava próximo ao quarteirão onde ficava seu apartamento, o Escritor percebeu em sua viseira algo errado com seu relógio digital. Ele estava marcando um horário 25 minutos anterior ao horário em que havia saido naquela tarde para o encontro marcado no estacionamento do shopping. "Aquele portal deve ter alterado a configuração do horário", pensou. Lembrou-se que ali perto, em um cruzamento movimentado no centro da cidade, havia um relógio de rua em formato de Iphone. Sem demora, caminhou em direção onde as duas avenidas se encontravam sempre congestionadas e avistou o imenso Iphone registrando a temperatura e a hora local, e ao ver o horário que ele marcava, arregalou o olhar. O relógio de rua também estava 25 minutos atrasado, exatamente igual ao seu relógio digital. "Isso não é possível", disse boquiaberto. Na esquina oposta do cruzamento, avistou outro homem careca, de terno e gravata, segurando uma maleta e mexendo com uma das mãos algo que parecia um pequeno tablet dourado. Subitamente parou o que estava fazendo e olhou na direção em que se encontrava o Escritor. "Novamente esses Observadores estranhos", pensou, enquanto retomava o caminho de casa, confuso com aquele horário atrasado. Entrou no prédio onde morava com uma sensação maluca de deslocamento, que o estava deixando um pouco tonto. Estava subindo as escadas, reordenando seus pensamentos e disposto a esquecer tudo aquilo e retomar as pesquisas que havia planejado fazer naquela manhã com seu livro, quando chegou no corredor e um visão surreal fez paralisar completamente todos os seus movimentos. Viu a si mesmo parado ali bem diante da escotilha de seu apartamento, com as chaves na mão e lendo um bilhete. Recuou atônito para as escadas, o coração disparado, tentando assimilar tudo aquilo. Começou a sentir falta de ar, e uma tontura mais forte fazia seus pensamentos colidirem uns nos outros numa velocidade catastrófica. Estava a ponto de perder os sentidos a qualquer momento, mas precisava de qualquer maneira não deixar aquele pânico tomar conta de seu cérebro. Lembrou-se do recado que havia encontrado exatamente onde estava e, seguindo a orientação do que tinha lido naquele pedaço de papel, procurou rapidamente se controlar. "Eu voltei no tempo. Eu voltei no tempo. Não é possível, mas eu voltei no tempo, eu voltei no tempo, eu voltei no tempo", repetia sem parar o Escritor, que começou a se tocar, como se quisesse ter certeza de que ele existia realmente naquele momento. Ao tocar no bolso de seu traje, lembrou-se do bloquinho e da caneta que o Dr. deixou cair no estacionamento e que tinha pego de volta e guardado consigo. "Sim, o bloco de anotações. Preciso deixar um recado para mim mesmo. Sim, um aviso, preciso avisar a mim dessa viagem maluca no tempo, senão entrarei em colapso quando eu me encontrar comigo novamente em breve. Mas o que estou dizendo? Fez sentido o que eu disse agora?", sussurrava freneticamente o Escritor, enquanto tentava controlar sua respiração e escrever o bilhete com o recado "Não entre em pânico. Você vai voltar um pouco no tempo. Acredite". Assim que terminou de escrever, pregou o pequeno papel autocolante na parede e desceu nervoso o lance de escadas que faltava em direção ao primeiro andar. Enquanto descia as escadas entre o primeiro andar e o térreo, desequilibrou-se e caiu rolando pelos degraus. Levantou-se rápido, pois sabia que o barulho de sua queda acabaria chamando a atenção do seu outro "EU", que já deveria estar também descendo as escadas em pulos flutuantes. O Escritor, mesmo aturdido com a queda, correu para fora do prédio, deixando para trás a porta aberta, e se escondendo atrás de um carro estacionado ali próximo. Esperou ainda alguns momentos, aguardando seu outro "EU" terminar de fazer as tais estimativas de quanto tempo levaria para chegar o mais rápido possível ao estacionamento do shopping. Ainda escondido, conseguiu ver a si mesmo atravessando a rua rumo ao encontro marcado com o seu amigo Dr. Brown. Respirou fundo e sentou na calçada da rua. Seu fluxo de pensamentos voltava ao ritmo normal, assim como sua respiração e seus batimentos cardíacos, como mostrava as informações translúcidas na viseira de seu capacete. Tudo o que o Escritor queria agora era tomar um boa xícara de café e fumar um cigarro na calmaria silenciosa de seu apartamento.

Escrito por Ulisses Góes

domingo, 19 de agosto de 2012

Aquela manhã fria e chuvosa era um manso conforto para o Escritor Astronauta, depois da noite angustiante que havia experimentado, sendo atormentado pela presença sombria daquele ser misterioso mostrando seu sorriso deformado e seu olhar doentio de psicopata. Olhava pela janela o céu nublado e a chuva fina caindo, enquanto fumava um cigarro entre goles de um café que tinha feito assim que acordou. Em seus pensamentos concentravam-se ainda alguns resquícios arrepiantes de lembranças do que ocorrera há poucas horas. Um leve calafrio percorreu sua espinha, como se uma presença tenebrosa tivesse passado rapidamente por ali, aproximando-se de sua nuca e soprado um vento congelante. Olhou ao seu redor com certa desconfiança, apenas para certificar-se de que não havia nada ou ninguém por perto. Tomou outro gole de café, e lembrou-se do email recebido no dia anterior com aquela frustrante notícia da Editora. Precisava definitivamente afastar todos aqueles pensamentos e lembranças que pudessem, de alguma forma cruel, trazer à tona novamente sentimentos depressivos e, consequentemente, aquele ser perturbador e tenebroso. Procurou concentrar-se no desenvolvimento da história de seu livro. Precisava dar seguimento às ideias planejadas para as páginas seguintes, além de descobrir como aquela parte da história em que havia parado acabou tomando um rumo tão diferente do que ele havia imaginado. As imagens translúcidas continuavam a flutuar por toda parte, e o Escritor observava agora cada uma delas com extrema atenção, buscando lembrar até que ponto da narrativa ele tinha realmente imaginado todas as situações acontecendo com seus personagens. Correu a mão por imagens próximas, que mostravam cenas nítidas dos dois irmãos fugindo dos agentes que os perseguiam, depois puxou outras cenas, e em uma delas aparecia Hemilly utilizando pela primeira vez o Destemporizador. Em outra cena, Henrique descobria o Livro da Morte num dia de chuva e saía correndo pela rua tentando inultimente não ficar molhado. Naquela manhã, o Escritor gastou um bom tempo fazendo um pesquisa em seu livro, relendo trechos escritos, procurando falhas na narrativa, pontas soltas na história, numa tentativa de encontrar o ponto exato onde ele possa ter perdido um certo controle da trama criada. Estava concentrado em uma das imagens flutuantes quando um barulho no teto tirou momentaneamente sua atenção. Olhou para cima intrigado, tentando imaginar a origem daquele som incômodo. "Parece alguma coisa sendo arrastada", pensou, enquanto seu olhar permanecia mirando o teto. Alguns segundos se passaram até que o silêncio predominasse novamente, tranquilizando o Escritor que retornou a observar atentamente as imagens translúcidas. Porém, não demorou muito para o barulho retornar, atrapalhando o trabalho minucioso que estava fazendo. "Mas o que está acontecendo lá em cima? Esses vizinhos nunca fizeram barulho antes. O que será que estão arrastando?". Cismado com aquela situação que visivelmente lhe causava um desconforto sonoro, decidiu sair e tomar conhecimento do que se passava no andar de cima. Colocou seu capacete, abriu a escotilha e escutou pela primeira vez um barulho abafado de música ecoando pelo corredor. Enquanto fechava a escotilha, percebeu algumas pedras lunares esquecidas próximas à escada de acesso ao andar superior. "Aposto que isso é trabalho de Drummond. Essas pedras só podem ser dele. Preciso falar com o pai desse menino ainda hoje", pensou, e enquanto subia as escadas, ouvia aquele barulho estranho e insistente, além da música com acordes meio familiares aos seus ouvidos. Subiu mais alguns degraus e chegou ao corredor do andar de onde todos aqueles sons pareciam surgir. Havia no chão um estranho rastro de algo branco, parecido com algodão. O Escritor agachou-se e tocou com os dedos, sentindo uma leve textura macia e gelada. "Isso é neve?", indagou para si mesmo, seguindo com os olhos aquela trilha branca que mais adiante sumia por uma porta entreaberta de um dos apartamentos. Levantou-se e continuou andando discretamente pelo corredor, quando começou a escutar acordes conhecidos de uma música do Pink Floyd. Ao chegar na porta, conseguiu ouvir com clareza "Comfortably Numb" ecoando em seus ouvidos. Bateu na porta e soltou um "Olá" interrogativo na esperança de que alguém viesse receptivamente ao seu encontro, mas não obteve qualquer resposta, e ninguém apareceu. Empurrou lentamente a porta e ensaiou dois passos para dentro do apartamento quando descobriu, espantado, um vasto ambiente iluminado pela luz mansa daquela manhã chuvosa. Considerou a possibilidade de que aquele apartamento parecia ser maior por dentro do que realmente mostrava ser por fora. O rastro misterioso de neve atravessava toda a extensão do salão e terminava em um guarda-roupa antigo de madeira, onde mais neve se acumulava em um monte que saía por uma de suas portas. O restante do ambiente era dominado por uma ausência de móveis, um teto com a pintura descascando em diversos pontos, pilastras de ferro corroídas completamente pela ferrugem e um chão coberto de poeira acumulada de muito tempo. "Olá", disse mais uma vez o Escritor, que não encontrava qualquer sinal de resposta, estranhando aquele apartamento ser tão imenso e, aparentemente, não encontrar seus moradores. Viu em um canto um velha vitrola tocando um disco de vinil, e percebeu que era dali que vinha o som daquela música nostálgica. Quando então decidiu caminhar na direção da origem da canção, revelou-se o inesperado para ele. Não havia gravidade dentro do apartamento. Ao invés de dar um passo, o Escritor Astronauta saiu flutuando suavemente pelo ambiente. A música ecoava pelo salão junto com os ruídos característicos de um disco com alguns arranhões e chiados, à medida em que ele voava, girando lentamente acima da trilha de neve, indo de forma estranha ao encontro daquele guarda-roupa. O tempo parecia seguir inerte ali dentro, com os segundos sendo devorados por uma eternidade calibrada. O Escritor viu a porta do guarda-roupa ser bruscamente aberta por uma rajada de vento vinda de seu interior, para no momento seguinte sair dali de dentro um leão, num salto majestoso, caminhando e sentando calmamente alguns metros à sua frente. O Escritor Astronauta, levemente assustado, sentiu uma descarga de adrenalina em seu corpo ao ver aquela fera observando silenciosamente sua viagem aérea. A música havia chegado ao fim, e só se ouvia o barulho do vento uivando naquele vasto ambiente, um vento que começou a ficar mais forte, poderoso o suficiente para lançar o intruso visitante de volta pelo salão imenso, jogando-o para fora do apartamento e arremessando-o contra a parede do corredor. A porta, que minutos atrás encontrou aberta, fechou-se bruscamente. Atordoado, levantou-se depois de alguns segundos e ficou imaginando o que foi tudo aquilo que aconteceu naquele momento. O rastro de neve no corredor havia desaparecido, e estranhamente começou a escutar a mesma música do início novamente. Movido por uma curiosidade corajosa, decidiu tocar a campainha, mas ela não estava funcionando. Relutou um pouco, e por fim deu três batidas firmes, aguardando pacientemente, até que alguém abriu a porta. "Bom dia", disse o Escritor, já percebendo que não se tratava do vizinho que morava ali e que ele conhecia há tempos, "Desculpe incomodar você assim tão cedo". "Não se preocupe, eu costumo acordar cedo", respondeu educadamente o jovem que aparentava ter pelo menos uns 27 anos. Cabelos lisos compridos e barba por fazer, ele estendeu a mão em gesto de cumprimento. O Escritor retribuiu amistoso e perguntou meio confuso, "Não me recordo de você. Você é novo aqui no prédio?". "Sim, nos mudamos ontem para cá, eu e meu irmão. Eu sou David, muito prazer. Aquele ali deitado no sofá lendo é o meu mano caçula, Elton", disse o rapaz, apontando para um garoto, aparentando uns 14 anos, completamente concentrado na leitura de um livro onde, na contracapa, o Escritor podia enxergar com nitidez a foto do autor, C.S. Lewis. Olhou sutilmente por sobre o ombro do novo vizinho e percebeu que o apartamento por dentro não era o mesmo que ele tinha visto e entrado minutos atrás, mas sim, um simples apartamento como todos os outros daquele prédio, inclusive quase idêntico ao seu próprio. "Muito prazer, eu sou seu vizinho do andar de baixo. Eu me chamo...", o Escritor estava prestes a se apresentar quando David o interrompeu com um ar meio surpreso, "Espera um pouco, eu acho que eu te conheço. Você não é aquele escritor conhecido que lançou uma série de livros contando a saga dos jovens vajantes do Tempo?". Aquela pergunta rapidamente chamou a atenção de Elton, que desviou seu olhar meio arregalado de espanto em direção à porta onde se encontrava o Escritor Astronauta. "Cara, que surpresa. Meu irmão tem todos os seus livros. Elton, olha quem é nosso vizinho", David mal terminou a frase, e Elton já estava bem ao seu lado, sorridente, com um brilho admirado no olhar. "É sério que você é vizinho da gente?", perguntou entusiasmado o adolescente. "Sim, eu moro no apartamento de baixo, mas...". "Acho que você já percebeu que tem um fã de suas histórias aqui", disse David, sem deixar que o seu vizinho visitante terminasse a frase, "Não é comum hoje em dia a gente ter um irmão que prefere ler livros do que ficar jogando videogames. Graças ao nosso pai que Elton gosta de ler desde criança". "Sim, de fato, concordo com você, infelizmente o hábito da leitura não é algo importante para os jovens de hoje", respondeu o Escritor, com os pensamentos um tanto confuso com aquela situação toda. Não se lembrava de ter visto nenhuma mudança no dia anterior ou em qualquer dia da semana, e o fato de o terem reconhecido como um provável escritor famoso o deixou cismado. Estava prestes a perguntar sobre aquele assunto com David, quando foi convidado a entrar. "Obrigado, David", disse, aceitando o convite, acompanhando os dois irmãos até a sala, onde viu novamente aquela mesma vitrola antiga tocando o mesmo disco de vinil, impregnando o ambiente com a canção nostálgica do Pink Floyd. Logo ao lado haviam pilhas de discos e livros. "Que interessante. Você tem uma relíquia que ainda funciona", comentou o Escritor, curioso. "Sim. Esse Toca-discos foi de meu pai. Eu gosto de ficar ouvindo alguns discos dele, sempre tenho boas lembranças", explicou David, de braços cruzados, com uma expressão perdida em memórias enquanto mirava o vinil girando no aparelho. "Como eu ia dizendo, eu moro no andar de baixo, mas eu não...", O Escritor não conseguiu terminar mais uma frase, sendo novamente interrompido, desta vez por Elton. "Espera só um instante, eu já volto", disse o garoto, correndo em seguida para o seu quarto e voltando momentos depois com 5 livros e uma caneta em suas mãos. "Eu imaginava que você não perderia essa oportunidade", disse David, ainda de braços cruzados, olhando com uma expressão sorridente para o irmão entusiasmado com aquele momento. "Você pode autografar os meus livros?", perguntou Elton, e sem esperar que o Escritor respondesse, continuou falando animado, estendendo um dos livros para ele, "Eu sou fã de suas histórias. Os personagens que você criou são incríveis, os dois irmãos e a amiga deles. Eu curti muito o primeiro volume, quando Henrique encontrou o livro misterioso que tinha o poder de matar as pessoas que tivessem o nome escrito neles". Ao ouvir aquelas palavras de Elton, o Escritor tomou um choque, congelando-se de pavor. Olhou para o livro em suas mãos, e viu na capa a imagem dos seus três personagens, Henrique, Roney e Hemilly, logo abaixo do título, com olhares desconfiados de quem procura pelo perigo ao seu redor. Ficou mudo, sentindo uma aceleração anormal no coração. Não conseguia fazer as palavras saírem de sua boca, e percebeu uma crescente falta de ar dentro de seu capacete. Elton permanecia diante dele, animado em explicar detalhes da história de cada um volumes. Porém, o Escritor já não escutava direito o que o garoto dizia. Sua visão começou a ficar turva, embaçada, e ele já não dicernia direito as imagens dos irmãos à sua frente. Suas vozes pareciam estar se misturando com a música que tocava insistentemente. Aturdido com toda aquela situação, sentiu uma tontura forte dominar seus sentidos, e tudo começou a girar lentamente ao seu redor até sumir em uma escuridão silenciosa. Caiu desmaiado e assim permaneceu por um minuto. Quando voltou a si, estava no chão, olhando para um teto branco e descascado em algumas partes. Ainda um pouco tonto, levantou-se, tentando recuperar os sentidos e recolocar seus pensamentos em ordem. Em sua viseira, um imagem translúcida mostrava algumas informações básicas de seus sinais vitais, alertando sobre sua pressão baixa e seus batimentos cardíacos. Passou a mão na viseira, afastando as imagens. Com algum dificuldade, levantou-se, respirando fundo. Calmamente olhou ao seu redor, examinando aquele apartamento vazio, empoeirado e inabitável. Era igual ao seu, com a diferença de que ninguém mais morava ali já há algum tempo. Permaneceu confortavelmente entorpecido pelo silêncio, enquanto olhava pela janela aquela manhã ainda fria e chuvosa.

Escrito por Ulisses Góes

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Voltando para casa, o Escritor Astronauta percebia algo diferente ao seu redor. Assim como sua percepção foi alterada por estranhar aquela floresta aparecer em um lugar onde tinha certeza ter visto momentos antes diversos prédios, agora caminhava pelas ruas e avenidas observando detalhes que jurava não fazer parte de seu mundo até algumas horas atrás. Um cartaz anunciando o show de uma banda cujo nome parecia diferente, uma placa de sinalização onde antes havia uma árvore, até mesmo uma pessoa conhecida, do outro lado da rua, vestida como policial militar prendendo um meliante em flagrante por tentar assaltar uma banca de revista que deveria estar na praça logo adiante, e não ali naquele ponto da avenida. "Espere um momento. Desde quando ele virou policial? Até onde me lembro, ele é advogado", pensou confuso o Escritor, enquanto observava parado aquela confusão acontencendo a poucos metros de onde estava. Seu amigo conhecido abria passagem entre a multidão curiosa, levando o infrator algemado até onde estava estacionada a viatura. "Que estranho. Será que ele agora é policial e eu não fiquei sabendo?", perguntou a si mesmo, enquanto retomava seu caminho de volta para casa. No céu, acima de sua cabeça, não havia mais qualquer sinal das borboletas que seguira mais cedo, mas apenas uma revoada rasante de andorinhas por entre prédios e árvores. Enquanto caminhava, ativou mentalmente páginas translúcidas de pesquisas na viseira de seu capacete com o intuito de certificar-se da profissão daquele conhecido amigo. Depois de alguns momentos, descobriu surpreso que seu amigo era, de fato, um policial militar. "Mas como? Eu tinha quase certeza de que ele era advogado. Seu escritório fica pelo Centro, não muito longe daqui". Um pouco confuso, sacudiu o capacete, afastando as imagens, e decidiu sair de sua rota para ir ao endereço onde funcionava o escritório de advocacia do amigo. Ao longo do caminho, seus passos ficaram gradativamente mais rápidos. Ao dobrar a esquina para a rua que seria seu destino final, esbarrou em alguém que vinha na direção contrária. Diferente das outras vezes, parou depois do esbarrão e olhou para o estranho,  que também havia parado à sua frente. Sentiu um calafrio quando viu aquele estranho de terno e gravata, careca e com um olhar que parecia o encarar silenciosamente, examinando seus pensamentos, enquanto inclinava a cabeça lentamente de lado. "Observador", pensou aflito o Escritor, desviando o olhar rapidamente e retomando seu caminho sem dizer uma palavra sequer, mas ciente de que aquelas coincidências estavam se tornando insistentes e estranhas. Reorganizou seus pensamentos e à medida em que ia chegando ao seu destino traçado de última hora naquela tarde, procurou o prédio onde ficava o escritório do amigo advogado. Estava quase perto, mais alguns metros. Quando o endereço já se encontrava praticamente ao alcance de sua visão, sentiu então o choque do momento sendo despejado em suas veias através de overdoses de adrenalina pura. Chegou ao local exato e descobriu que não havia qualquer prédio ali, mas apenas um imenso terreno baldio. Ficou parado, atônito, congelado pela situação anormal que o deixou com os pensamentos desorientados. Era estranho tudo aquilo e não fazia a menor ideia se aquilo era uma brincadeira maluca de sua mente, ou um grande equívoco que estava cometendo. "Posso ter me equivocado e acabei seguindo uma ideia meio louca. De repente, eu nem conhecia aquele policial, devo ter confundido ele com alguém que conheço, pela enorme semelhança. E este endereço, posso até estar em uma rua errada, ou então simplesmente demoliram o prédio que havia aqui antes. Está explicada essa minha confusão", disse o Escritor, procurando nitidamente dissipar todas as dúvidas com relação ao momento desorientado pelo qual parecia passar.
Retomou o caminho de volta para casa, enquanto percebeu em sua viseira pequenas imagens translúcidas surgindo, alertando sobre as condições climáticas tempestuosas que estavam para surgir naquele final de tarde. Informações como temperatura, pressão pluviométrica, umidade relativa do ar e velocidade do vento piscavam insistentes no lado esquerdo de sua viseira. O Escritor leu todos aqueles dados, olhou para o céu e então enxergou a tempestade aproximar-se lenta e perigosamente no horizonte. Decidiu apressar o passo assim que sentiu rajadas fortes de vento mais fortes que o normal atravessando as ruas. Conseguiu chegar na porta do seu prédio antes que qualquer chuva começasse a desabar, e ao entrar pela porta, um novo esbarrão, dessa vez com o carteiro que saía preocupado com aquele temporal iminente. "Carteiro. Isso me faz lembrar que preciso checar meus emails hoje para saber se tenho alguma resposta da Editora a respeito dos originais que enviei", pensou, enquanto subia as escadas. Fechou a escotilha de seu apartamento, tirou seu capacete, respirou fundo por ter chegado são e salvo em seu lar e foi até a cozinha, enquanto escutava trovões ao longe anunciando a tempestade. Fez um pouco de café, encheu uma xícara, andou pela sua sala afastando as dezenas de imagens translúcidas que sempre flutuavam pelo seu apartamento, sentou-se diante de seu computador e abriu seu email. Como havia previsto, a Editora havia respondido. Leu cada linha com atenção e constatou, profundamente decepcionado, que o editor-chefe informava que o original enviado não foi aprovado pelo Conselho Editorial, apesar dele particularmente ter gostado da história, que considerava de uma genialidade ímpar, segundo suas palavras ditas no email. Visivelmente desanimado e abalado com a resposta, o Escritor Astronauta sentiu uma alteração na força gravitacional exercida pela Terra naquele momento, como se influências negativas o estivessem pressionando contra o chão. A tarde estava se esvaindo mais rapidamente do que o habitual lá fora, e o céu havia escurecido antes do tempo por causa da tempestade que se aproximava anunciada por trovões distantes. Leu mais uma vez o email e parou exatamente no trecho em que o editor-chefe falava da tal "genialidade ímpar" de seus textos. Uma raiva contida começou a tomar forma em sua mente, e um torpor dominou seus sentidos por alguns instantes breves. Passou a mão na testa, massageando seus questionamentos mais interiores. "Se meu original é de uma genialidade ímpar, por que então diabos eles não aprovaram? Que porra de editor-chefe é esse, que elogia o que eu escrevo, e deixa um conselho editorial vetar meu trabalho?". Visivelmente chateado, pegou sua xícara de café e foi sentar-se no sofá da sala. A raiva aumentava a cada vez que lembrava do email. Sentiu um incômodo corroendo seu íntimo, um nervosismo contido começou a tomar conta de seus movimentos. Não tinha qualquer ânimo para escrever nada naquele momento. Olhou as imagens translúcidas com suas luminosidades sutis flutuando acima de sua cabeça, calibrando a penumbra que dominava o ambiente de seu apartamento naquele momento, invadida ocasionalmente pelos clarões da tempestade. A raiva que estava sentindo se misturava a outras sensações amargas, como decepção e tristeza. "Será que vai chover quando você morrer?", disse uma voz em um tom irônico controlando uma possível risada no final da frase, fazendo o Escritor ficar imóvel, enquanto mexia lentamente a cabeça procurando a origem da voz estranha. "Então me diga. Sua raiva é pela resposta negativa, ou por começar a considerar inútil tudo o que você tem feito até o momento em sua vida?", perguntou aquela voz, novamente segurando uma risada quase frouxa ao final da pergunta. "Vamos lá, cheque o seu cérebro. Descubra a raiz de seu problema, a causa de sua raiva contida. Cheque seu cérebro. Com certeza você vai descobrir o inútil ser humano que você é". Dessa vez uma gargalhada liberada em uma loucura esquizofrênica ecoou pela sala dominada pela escuridão da noite que se aproximava. Permaneceu sentado no sofá, e junto com a sua raiva, seu desânimo, sua decepção, agregou-se um pavor congelante pela estranha presença que estava sentindo em seu apartamento. A escuridão avançava por todos os lados. Encarou um canto da sala onde já dominava o breu supremo, e finalmente viu uma aparição sinistra caminhar lentamente com passos macabros e surgir em sua frente. Nos segundos seguintes, teve a nítida impressão de estar ouvindo Alice in Chains e seus acordes distorcidos de guitarra de "Check My Brain". A aparição sinistra parou diante do Escritor Astronauta. Era uma cópia fiel dele mesmo, e a única diferença entre eles era o traje totalmente preto que usava. A viseira do capacete estava aberta, porém o Escritor atônito não enxergava nenhum rosto ali. Aquele seu clone das trevas ficou parado alguns segundos criando um barulho de respiração abafada, fazendo o Escritor se sentir o próprio Luke Skywalker encarando seu pior pesadelo. Um medo perturbador dominou seus nervos assim que a voz estranha se fez ouvir de novo. "E então? Curtiu minha imitação de Darth Vader?", disse seu clone das trevas, dessa vez soltando outra risada sinistra, aproximando-se e encarando o Escritor. Um rosto apareceu dentro da escuridão do capacete, e o Escritor poderia jurar estar vendo a face do emblemático Coringa interpretado pelo falecido Heath Ledger. Seu coração pulsou acelerado pelo pavor daquele rosto sorrindo diante dele. Não fazia a menor ideia do que fazer e nem do que dizer. "O que foi? Faltaram palavras agora para expressar seu medo? Para um escritor, quando faltam as palavras, deve ser algo semelhante à morte, hein?". E novamente seu clone sinistro soltou uma nova risada impregnada de uma esquizofrenia negra. "Mas e aí? Já checou seu cérebro atrás das respostas? Vamos lá, você tem capacidade, eu sei que tem... Olhe para você, um escritor 'famoso', autor de tantas 'obras geniais'. Será que não consegue me responder algumas perguntas tão simples?", o clone sinistro, com aquele rosto conhecido saído diretamente do filme de Batman, sentou-se na mesinha de centro diante do Escritor, e o encarou por arrastados microssegundos e continuou com seu discurso desafiador. "Como é ser um fracassado? Fico me perguntando a todo momento como é que você se suporta, como você aguenta viver sabendo que tudo o que faz nunca leva você a lugar algum. Todos os seus esforços sempre em vão, seus projetos sempre ficando pelo meio do caminho. E você, coitado, sempre fingindo que está tudo bem. Porra, cara! Me diz aí, estou curioso pra caralho!".
O Escritor sentiu uma angústia invandindo seu íntimo, enquanto escutava aquele clone maldito calmamente questionar todos os seus atos para em seguida rir descaradamente em sua cara. Fechou os olhos, criou coragem e questionou o motivo de toda aquela intimidação que estava sofrendo, "Por que você está aqui? O que você quer de mim? Você quer me derrubar, não é? Você quer que eu entregue o jogo?". O clone das trevas do Escritor levantou-se exaltado, rindo, "Olha só, finalmente criou coragem pra dizer alguma coisa. E aí? Vai admitir que é um fracassado completo? Vamos lá, reconheça, me faça feliz, me encha de orgulho, porra!". Aquela frase parecia uma verdadeira ofensa para o Escritor, que reuniu força interior suficiente para abrir os olhos e confrontar aquele seu pesadelo sinistro e tudo o que ele insistia em dizer na sua frente. "Você quer que eu desista de tudo aquilo que eu acredito, seu desgraçado. Você não é mais forte do que minha vontade", disse o Escritor de maneira contida, cerrando o dentes, demonstrando raiva por ter deixado aquela situação toda se materializar naquele momento difícil para ele. O clone das trevas parou por um momento, como que pensando nas palavras ditas pelo Escritor. Em seguida, se aproximou de maneira ameaçadora, mantendo uma distância de centímetros entre seus olhares, "Meu caro. Não estou nem um pouco preocupado em medir forças com você. Isso, para mim, é desnecessário. Você tem que entender uma coisa: eu sou parte de você, e você é parte de mim. Você me alimenta com suas paranóias e dúvidas. A sua falta de fé em você mesmo é o que torna minha existência possível. Logo, enquanto você sempre duvidar de você mesmo, eu estarei aqui, presente, assistindo sua morte lenta". O Escritor começou a ficar atordoado com aquelas palavras, apoiando a cabeça nas mãos, querendo colocar seus pensamentos em ordem e buscando se livrar de todas aquelas sensações negativas. "Você não pode dizer o que devo pensar, e nem como devo me sentir!". O Astronauta negro com seu rosto sorridente de Coringa não desistia de atormentar o Escritor e continuava a falar. "Mas não sou eu quem digo como você se sente. É você mesmo. E nem pense que vai se ver livre de mim. Não é porque você pode estar alegre que eu não existirei mais. Eu estarei sempre com você, esperando na escuridão sua raiva, seu desânimo, sua decepção e sua tristeza se manifestarem de novo para eu aparecer e te mostrar que eu ainda estou aqui e que posso orientar suas atitudes nesses momentos tão deliciosos para mim. Cheque sempre seu cérebro, porque eu sou sua desilusão, sua dor, sua fraqueza, seu medo, sua loucura, seu passageiro mais sombrio". O Escritor Astronauta sentiu uma mão pesada o empurrar contra o sofá, deitando seu corpo à força. Não conseguia se mexer, e sua respiração ofegante deu lugar a uma falta de ar angustiante. Aquele clone das trevas o segurava, e o rosto maquiavélico do Coringa antes presente no capacete havia desaparecido completamente, deixando somente aquela respiração abafada e sufocante como um Darth Vader nervoso prestes a sugar sua alma. Lá fora, a tempestade começava com uma intensidade impressionante. O Escritor fechou os olhos, concentrou seus pensamentos, fazendo-os retroceder no tempo. Aquele dia passou ao contrário em sua mente. Lembrou-se de estar mais cedo conversando animadamente com sua amiga Carol, ouviu sua risada animadora, fixou seu pensamento neste momento compartilhado com a Feiticeira Lunar e, inesperadamente, a aparição sinistra desapareceu rapidamente através de um grito esfumaçado de pavor. Levantou-se, ainda com o coração acelerado, e percebeu uma mansa claridade entrando pelas janelas de seu apartamento. Estava amanhecendo, e uma chuva fina anunciava um dia frio e nublado. Olhou para seu computador. A página com o email enviado pelo editor-chefe ainda permanecia aberta, exatamente como ele havia deixado horas atrás.

Escrito por Ulisses Góes 
 
© 2013 Contaminação de Ideias. Todos os direitos reservados do autor. É proibida a cópia ou reprodução sem os direitos autoriais do autor Ulisses Goés. Powered By Blogger. Design by Main