quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O Escrinauta ~ Descontrole

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Cada soco que recebia era violento e potente o suficiente para marcar seu rosto com feridas e hematomas, e fazer sua boca cuspir sangue a todo golpe desferido pelo seu personagem enfurecido, que momentos antes havia partido para cima de seu criador numa fúria indomável, arrancado o capacete que poderia ser sua melhor proteção contra a brutalidade que avançava a cada murro desferido. Caído no chão ressequido daquela imensidão desértica, completamente enfraquecido pelas repetidas investidas vorazes dos punhos de Flávio, o Escritor sentia toda aquela dor lancinante, pontadas agudas que iam progressivamente deixando sua face dormente por todos os lados. "Seu filho da puta, faça aqueles dois moleques me devolverem o que me pertence agora!", dizia o personagem descontrolado, entre um soco e outro, enquanto encarava os olhos de sua vítima a poucos centrímetros de seus, escondidos atrás dos óculos escuros. A postura determinada de Flávio demonstrava que ele não descansaria enquanto não conseguisse seu Livro da Morte de volta, e cada novo golpe desferido por ele parecia ser mais perigoso e fatal para o Escritor, já completamente atordoado pela surra. Precisava agir e reverter aquela situação, e a única saída imaginada pelo Escritor era fazer uso do seu poder maior e projetar de volta para dentro da história aquele seu personagem rebelde e perigoso, fazendo ele sumir diante de si. Apesar de sentir dores sinistras percorrendo cada músculo de seu rosto, respirou fundo, fechou os olhos e se concentrou na história que estava escrevendo. Estava muito difícil, mas precisava se concentrar. Aos poucos, escutou a voz de Flávio diminuindo, sendo lentamente abafada pelo silêncio que tentava construir em sua mente, até que finalmente tudo era silêncio e escuridão. Abriu os olhos e percebeu, com uma expressão confusa se desenhando em seu rosto, que seu capacete estava intacto e ainda encaixado em seu traje. Podia ouvir sua respiração ecoando sufocada, embaçando completamente a viseira. Apoio-se no braços e permaneceu sentado ainda por um tempo. Olhou ao redor e percebeu que ainda estava naquele deserto vasto, mas agora sem a presença ameaçadora de Flávio, seu personagem descontrolado. Apoiou o capacete nas duas mãos, descobriu que não sentia mais qualquer dor aguda ou dormências em seu rosto, nem qualquer vestígio de sangue que minutos antes cuspia sem parar pela sua boca.
Calmamente levantou-se, dando um giro de 360º observando aquela imensidão desolada. Não havia absolutamente nada ali, em um raio de 30 quilômetros. Não conseguia entender por que Flávio o havia transportado para aquela paisagem erma. Perdido em pequenas dúvidas, virou-se mais uma vez e assustou-se com o que viu bem à sua frente. "Como não enxerguei você antes? Ou será que você não estava aqui até agora há pouco?", perguntou-se o Escritor, enquanto encarava lentamente aquele carro vermelho sujo e empoeirado estacionado ali diante dele, um modelo que parecia ter vindo diretamente de alguma Concessionária de veículos dos anos 90, com um chassi levemente quadrado. "Parece um Passat antigo", pensou. Focou o olhar na viseira de seu Capacete, tentando descobrir se ele estava funcionando normalmente. Quando uma imagem translúcida com a página de busca do Google apareceu deslizando pela esquerda, respirou aliviado e começou uma rápida pesquisa. Descobriu que aquele carro, na verdade, era um modelo americano de um Plymouth Sundance ano 1993. Mas não fazia a menor ideia do motivo para aquele carro aparecer ali. Preso ao limpador do parabrisa havia um papel dobrado, parecia ser um mapa daquela região. O Escritor Astronauta caminhou em direção ao carro e pegou o mapa, e depois de uma rápida examinada, descobriu no verso várias anotações escritas à mão. "São trechos de minha história!", disse, espantado, sem saber de quem poderia ser aquela caligrafia quase rebuscada. Sentiu um jorro adrenalizado percorrer seu corpo e fazer seu coração pulsar mais acelerado. "Preciso voltar para minha história! Preciso sair daqui!", pensou, angustiado ao perceber a situação no qual se encontrava. E novamente respirou fundo, procurou se acalmar, fechando seus olhos e buscando um foco concentrado na trama que estava escrevendo há semanas. Procurou, durante alguns momentos, encontrar as imagens de sua história, mas estava sendo muito difícil, era como se tivesse sofrido um desmaio súbito e tentasse acordar a todo custo. E repentinamente aconteceu, questão de microssegundos, uma imagem veio ao seu encontro tão rapidamente quanto seu pensamento poderia atraí-la. Finalmente estava de volta à história, quase exatamente do ponto onde havia parado, apenas alguns momentos antes, como um retrocesso literário-temporal de quem estava relendo o útimo trecho escrito em busca de algum erro ortográfico, alguma falha de pontuação. Encontrou toda a situação vivida pelos seus personagens surgiu nítida em HDTV diante de seus olhos. Sentiu um formigamento em seus dedos, e escutou o leve barulho de teclas sendo digitadas. Finalmente estava em processo de criação, escrevendo sentado diante do monitor de seu computador. Enquanto escrevia, escutou um som ambiente invadindo subitamente sua mente, como uma melodia de rock progressivo dos anos 70 ecoando um trecho épico servindo de trilha sonora de sua história. "De novo acontecendo isso", pensou, enquanto escutava outra música, sem qualquer aviso, inundar sua mente, assim como ocorrera há alguns dias quando escutou Arctic Monkeys invandindo seus tímpanos enquanto andava pela rua. Dessa vez viu uma imagem de áudio translúcida flutuar à sua esquerda, surgindo como se quisesse pelo menos informar ao Escritor ouvinte qual era a música que estava ouvindo. Na verdade, pela informação de tempo de duração da música, constatou que estava escutando um álbum inteiro, "Space Ritual", de uma banda britânica chamada Hawkwind.
"Hemilly interrompeu meio indignada a explicação de Henrique, 'Peraí, você está me dizendo que pegou esse livro porque você curtiu o título que estava na capa, é isso que você está tentando me dizer?'. 'Mais ou menos. Agora como eu iria adivinhar que era um livro amaldiçoado? Ou satânico mesmo?', tentou se explicar Henrique. 'Eu ainda quero entender por que essas pessoas estão atrás de vocês, e por que eles querem tanto esse livro', ponderou Hemilly. 'Eu não faço ideia. A única certeza que tenho é de que eles estão tentando pegar a gente há uns 3 dias e só hoje conseguimos despistar eles e chegar até você', explicou Henrique. Hemilly esboçou uma expressão pensativa e repentinamente voltou-se para Henrique, parando diante dele a poucos passos, 'Espere um instante! se eles estão atrás do livro, por que você simplesmente não entrega para eles?', questionou ela. Henrique dessa vez não demorou em responder, explicando que sabia do poder que estava em suas mãos e que tinha receio de que pudesse estar entregando todo aquele poder para as pessoas erradas. Além disso, ele pensou que aquele livro tivesse um verdadeiro dono, que neste momento poderia estar procurando desesperado o bem precioso que havia perdido. 'Então você acha que neste momento deve ter algum Sr. Smeagol andando angustiado pelas ruas tentando achar o precioso dele?', indagou ironicamente Hemilly, apesar de haver um tom meio questionador em sua pergunta. 'Esse Livro é muito perigoso, ele detêm um poder incrível que eu mesmo experimentei hoje. É assustador e entorpecente, como se quisesse dominar sua mente e ordenasse que você promovesse matanças e genocídios'. Henrique pela primeira vez, diante da amiga e de seu irmão, demonstrou certa ansiedade nervosa com relação a tudo o que estava acontecendo com eles. Parecia começar a entender como se iniciava o funcionamento macabro do poder daquele livro em suas mãos. Roney, ainda mantendo sua posição vigilante observando o movimento da rua pela janela da sala, percebeu a mudança estranha de comportamento do irmão mais velho e revelou sua preocupação para a amiga. 'Você precisa ajudar a gente, Hemilly. Você é a única capaz de fazer isso agora', disse Roney. Ela esboçou em seu rosto uma leve expressão interrogativa, já que não fazia a menor ideia de como poderia ajudar seus amigos a resolver aquela situação maluca. Então Roney continuou falando sem demora, 'Você pode usar aquele pingente em forma de uma pequena ampulheta para a gente tentar descobrir quem perdeu esse livro'. Hemilly espantou-se com as palavras de Roney, o que fez seu coração acelerar. Como Roney sabia de seu pingente? Ela não havia contado para ninguém desde que o adquiriu recentemente quando comprou pelo Mercado Livre por recomendação de uma amiga bruxa. Hemilly ficou meio confusa, e estava prestes a questionar como os dois irmãos sabiam de sua pequena jóia quando algo chamou a atenção de Roney pela janela. 'Gente, tem algo estranho acontecendo na rua!', disse com uma voz tensa, fazendo com que Henrique e Hemilly rapidamente corressem para observar através de frestas da cortina o que estava ocorrendo fora da casa. Os três ficaram observando silenciosos as luzes dos postes se apagarem uma por uma, enquanto pequenas descargas elétricas faziam explodir as luminárias com as lâmpadas, deixando toda a extensão da rua tomada por uma escuridão tenebrosa. Logo em seguida, as luzes das casas da vizinhança se apagaram, e não demorou muito para a escuridão tomar conta da casa de Hemilly também. Paralisados por um pavor momentâneo e instantâneo, Hemilly, Henrique e Roney enxergaram na rua um vulto se aproximando calmamente em direção à frente da casa."
O Escritor interrompeu seu processo criativo, estranhando aquele último trecho escrito por ele. Não havia imaginado aquilo acontecendo, nem fazia ideia se sua mente já tinha sugerido escrever algo semelhante na história. Tinha a impressão de que, naquele ponto, a história começava a acontecer por si mesma, sem que houvesse algum desenvolvimento de criação de sua parte ou qualquer influência sua como autor. Olhou para a imagem translúcida congelada acima de seu monitor, tentando identificar que vulto era aquele que se aproximava da casa de Hemilly. Encarou fixamente por alguns segundos largados, buscando um close do rosto encoberta pela escuridão da rua. A campainha tocou, assustando o Escritor, tirando-o de sua concentração momentânea. "Cara, como odeio essa sirene! Parece um alerta de tsunami. Preciso trocar essa campainha", resmungou, enquanto lembrava que sempre prometia a si mesmo tarefas simples que quase sempre esquecia de fazer. Levantou-se e foi em direção à escotilha. Havia uma visita na porta de seu apartamento.

Escrito por Ulisses Góes
Fotografia: Hunter Freeman

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