sexta-feira, 15 de julho de 2005

Cacaos // capítulo 1

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Seus olhos abriram-se. Seus sofridos olhos dourados mais uma vez acordaram para o mundo à sua volta. Esse despertar era mais conseqüência de uma constante vigília com a qual passara a conviver, do que de um simples e inevitável ato de acordar, buscando reestabelecer contato com o mundo que o abrigava. No seu caso, reestabelecer esse contato significava entregar-se completamente à batalha mortal pela sua própria sobrevivência. Já não fazia mais diferença alguma estar acordado ou em estado de aparente sonolência, pois a realidade que agora o cercava havia se tornado fiel referência para os pesadelos que o atormentavam. Pesadelos que o perseguiam nas noites sem lua e de estrelas mortas. Sonhava com luzes trêmulas e pessoas desesperadas, sendo totalmente consumidas pelo fogo de um clarão, que diante de si era a própria devastação em movimento. Em seus pesadelos podia ouvir com clareza o som da destruição completa, o trovão aniquilador, o estrondo impertinente da morte. Sons que arranhavam o ar, causando pânico, incutindo um pavor extremo ao espírito. Então acordava sobressaltado, suando frio, o corpo tremendo, gritos sufocados na garganta rouca. Começava então a conversar consigo mesmo num monólogo aflito, angustiante, onde chorava buscas desesperadas por Deus. Falava de toda a sua vida antes de todo aquele caos acontecer. Recordava sua vida agitada pelas estruturas de concreto e aço da cidade grande, relembrava seu passado, voltava às suas origens, buscava suas raízes. Sua infância e adolescência vividas numa cidade do interior da Bahia. Sua família, pai, mãe, irmãos, a casa onde morava, a rua onde costumava brincar, seus amigos. Todas essas lembranças eram despertadas, e ele as colocava num doloros combate com as imagens alucinantes e aterrorizantes de seus pesadelos. Era como ser pego de surpresa por um acidente, de repente um choque brusco, seguido de um torpor dos sentidos, a estranheza de si mesmo perante tudo ao seu redor, forçando a própria mente a não querer acreditar que tudo aquilo estivesse realmente acontecendo. Ele podia sentir o choque terrível dentro de si. Uma sensação que se tornou freqüente durante aqueles dias nublados e cinzentos, e aquelas noites escuras, sem Lua e sem estrelas. Noites preenchidas apenas pelos seus pesadelos, o seu mar de pavor, a sua angústia com aquelas imagens distorcidas e berrantes, impregnadas de cores violentas, gritos penetrantes e rostos desfigurados. Havia se tornado um náufrago buscando nas lembranças de seu passado um refúgio, que lhe machucava mais do que lhe dava abrigo. Eram recordações de toda uma vida, que se transformavam num martírio doloroso para seu espírito, perdido em meio à desolação, ao medo e à angústia de se descobrir sozinho num outro mundo.

Dessa vez, porém, seus olhos abriram-se por outro motivo. Não foram os pesadelos que o despertaram de seu sono agitado. Fôra um barulho. Um som tímido e rasteiro, esgueirando-se como uma cobra por entre as folhas caídas dos cacaueiros. Naquele instante, seus olhos abriram-se, e movido por um instinto de pura sobrevivência, sentiu seu espírito mergulhar num total estado de alerta. A tensão fez seus músculos se enrijecerem, desde as pontas dos dedos, empretecidos e com as unhas por fazer, até às raízes dos cabelos claramente castanhos, sujos e maltratados. Escorregou furtivo para detrás de uma pedra, e ali permaneceu, deitado de bruços, as mãos unidas ao peito. Assustado, olhava para os lados, tentando encontrar a origem daquele barulho. Queria descobrir o que estava se mexendo por debaixo das folhagens. Alguma coisa, ou alguém, caminhava ali por perto, pisoteando o tapete de folhas que cobria toda aquela terra. Seu olhar percorria toda aquela paisagem exuberante que lhe cercava. Buscava um sinal, uma pista, um vulto qualquer que denunciasse sua presença. Passou-se alguns segundos, até que finalmente ele descobriu a origem dos ruídos. Enxergou, então, a ponta de um rabo de pêlos dourados, que deveria ter aproximadamente um palmo e meio de comprimento, balançando incessante, como se seu dono procurasse desesperado por algo. O assustado observador continuou quieto atrás da pedra, espiando aquele ser vivente de um mundo selvagem perambular por debaixo do tapete de folhas. O momento prolongou-se hesitante até quando tudo tornou-se surpresa e admiração para o jovem. Seus olhos descobriram um pequenino animal, do tamanho de um punho fechado, agitado, inquieto. Tinha o pêlo dourado, e sua cabecinha peluda o fazia assemelhar-se a um pequenino leão.

- Um mico-leão dourado...

Foi um sussurro solto num instante de admiração plena. Durante um longo momento, o jovem ficou esquecido naquela cena, mergulhado na situação, absorto num transe hipnótico, fitando extasiado o mico, que agora revelava-se por inteiro acima das folhas caídas no chão. Sentado sobre uma pequena pedra, o mico olhava atento de um lado para o outro, como que a pressentir algo no ar. Um espécime como aquele o jovem conhecia apenas pela TV, em documentários da National Geografic ou Discovery Channel sobre reservas ambientais, preservação do Meio Ambiente e animais em extinção. Permaneceu ali, hipnotizado pela imagem do mico-leão dourado. podia sentir o pulsar da vida dentro daquele pequeno animal. Desejou imensamente que o mico se aproximasse dele, queria vê-lo mais de perto, quem sabe até poder tocar ele. O jovem permanecia imóvel, quase nem respirava, temendo que o menor ruído acabasse afugentando o mico. Era um espécime raro da fauna regional, e o admirado observador tinha a consciência de que podia ser a única vez que o estivesse contemplando. Talvez a primeira e última vez. O pequenino saltava de um lado para outro, tinha movimentos ágeis e brincalhões, mas em determinado instante parou atônito, silencioso, e descobriu o olhar atento do observador solitário. Era como se também ele estivesse sentindo o pulsar da vida escondida por detrás daquela pedra. Ficou imóvel durante alguns segundos, para logo em seguida sair em debandada, pulando de galho em galho, de árvore em árvore. parecia assustado, muito assustado. O jovem, desesperado, tentou seguir o mico em sua fuga amedrontada, mas foi em vão. O mico parecia assombrado, como se tivesse visto um perigo quase iminente que colocasse em risco sua sobrevivência. Talvez deconfiasse do estranho que lhe observava atrás daquela pedra. O jovem correu por entre os cacaueiros seminus, numa tentativa de acompanhar a fuga do mico, mas de nada adiantou. Sentiu-se triste com o ocorrido, pois seu único desejo naquele momento era contemplar a beleza selvagem daquele pequeno animal, e talvez poder despertar a sua natureza brincalhona e curiosa. Porém, agora já era tarde demais para buscar novamente o macaquinho. mais uma vez, a solidão sutil friamente lhe abraçou por completo. Era apenas a sua solidão, e nada mais.

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